terça-feira, 29 de outubro de 2024

A Ira de Deus


    Embora muito mais se fale do amor de Deus, os sinais da divina ira também já se faziam notar desde os primeiros dias da Criação, como na expulsão de Adão e Eva do paraíso, no 'retorno ao pó', e na própria condenação da Serpente. Também aconteceu na punição de Caim, pelo assassinato de seu irmão, e no flagelo que se deu com quase toda humanidade que vivia a devassidão nos tempos de Noé.
    Ora, na Lei que Deus ditou a Moisés havia horrendas maldições em caso de desobediência. Está na conclusão do Livro do Levítico: "Farei cair sobre vós a espada para vingar Minha Aliança. Se vos ajuntardes em vossas cidades, lançarei a peste no meio de vós e sereis entregues nas mãos de vossos inimigos. Tirá-vos-ei o pão, vosso sustentáculo, de tal sorte que dez mulheres o cozerão em um só forno e o entregarão por peso: comereis e não ficareis saciados. Se, apesar disso, não Me ouvirdes, e ainda Me resistirdes, em Meu furor marcharei contra vós e sete vezes mais castigá-vos-ei por causa dos vossos pecados. Comereis a carne de vossos filhos e de vossas filhas." Lv 26,23-29
    Pôs, de fato, uma simples escolha ao povo através de Moisés, ante perspectivas de guerra e exílio, exortando a uma verdadeira conversão: "Hoje tomo por testemunhas o Céu e a Terra contra vós: ponho diante de ti a vida e a morte, a bênção e a maldição. Escolhe, pois, a Vida, para que vivas com tua posteridade." Dt 30,19
    A verdade é que, seja o momento da explosão de Sua ira ou uma violência por Ele permitida, muitos de Seus desígnios continuam sendo mistérios para nós, como a própria Paixão de Cristo, e tudo que nos cabe é resignadamente aceitá-los. Contudo, cientes da engenhosidade de Seu salvífico projeto, devemos confiar no bem maior que Ele sempre realiza, mesmo a partir dos piores acontecimentos. A Carta de São Paulo aos Romanos ensina: "Tenho para mim que os sofrimentos da presente vida não têm proporção alguma com a futura Glória, que deve ser-nos manifestada." Rm 8,18
     Esse aparente paradoxo, entre a ira e a Misericórdia de Deus, pertence aos domínios de Sua onisciência, como este Apóstolo explicou, invocando uma passagem do Livro do Profeta Isaías que trata da consolação de israel, já prevendo o que viria a ser o fim do exílio na Babilônia: "Ó abismo de riqueza, de Sabedoria e de ciência em Deus! Quão impenetráveis são Seus juízos e inexploráveis Seus caminhos! Quem pode compreender o pensamento do Senhor? Quem jamais foi Seu conselheiro? (Is 40,13-14)" Rm 11,33-34
    Com efeito, falando por este Profeta, Deus mesmo acusou Seus rompantes para com Israel: "Num acesso de cólera, de ti volvi Minha face. Mas em Meu eterno amor tenho compaixão de ti." Is 54,8
    O Livro dos Salmos até aponta-a como apenas um breve lapso: "Porque Sua ira dura apenas um momento, enquanto Sua benevolência é para toda vida. Pela tarde, vem o pranto, mas de manhã volta a alegria." Sl 29,6
    Seguindo os flagrantes de Sua ira, no entanto, também vemos que Ele não Se servia só de catástrofes naturais para aplicar Suas punições, como aconteceu no episódio das pragas do Egito. Numa delas, o Pai Celeste pessoalmente fulminou todos primogênitos egípcios, de homens a animais, fato que depois foi atribuído ar um anjo vingador. É da leitura do Livro do Êxodo: "Naquela noite, passarei através e ferirei os primogênitos no Egito, tanto os dos homens como os dos animais, e exercerei Minha justiça contra todos deuses do Egito. Eu sou o Senhor." Ex 12,12
    Ele também Se mostrou iracundo nos tempos do próprio Êxodo, quando o povo de Israel, no deserto, fez um bezerro de ouro para adorar, com a anuência de Aarão, irmão mais velho de Moisés, pois ele se demora na montanha onde foi ter com Deus: "O Senhor disse a Moisés: 'Vai, desce, porque se corrompeu o povo que tiraste do Egito. Depressa desviaram-se do caminho que lhes prescrevi. Para si fizeram um bezerro de metal fundido, prostraram-se diante dele e ofereceram-lhe sacrifícios, dizendo: 'Eis, ó Israel, teu Deus que te tirou do Egito.' 'Vejo', continuou o Senhor, 'que esse povo tem dura cabeça. Deixa, pois, que se acenda Minha cólera contra eles, e reduzi-los-ei a nada. Mas de ti farei uma grande nação.'" Ex 32,7-10
    Mas mesmo com todas frequentes intervenções de Moisés, nem todos israelitas entraram na Terra Santa. Mais tarde, através do salmista Ele justificou: "Por isso, em Minha ira, jurei que não haveriam de entrar no lugar de descanso que lhes prometera!" Sl 94,11
    Pelo pecado da idolatria, aliás, a fúria de Deus alcança até mesmo os já falecidos, como Ele mesmo diz no cântico de Moisés, que estava em seus últimos anos, visto no Livro do Deuteronômio: "Eles provocaram Meu ciúme com um falso deus, e irritaram-Me com seus vazios ídolos. O fogo da Minha ira está a arder e vai queimar até à mansão dos mortos, vai devorar a Terra e seus produtos, e abrasar o alicerce das montanhas." Dt 32,21-22
    E como afirma o Livro da Sabedoria, para o espanto de muitos, Suas punições não recaiam somente sobre os ímpios: "Verdade é que a prova da morte também feriu os justos, e numerosos foram aqueles que ela abateu no deserto, mas a ira de Deus não durou muito tempo..." Sb 18,20
    De fato, o profético Livro das Lamentações registra o flagelo de Jerusalém que atingiu até as crianças, quando se daria a destruição do Templo e o exílio da Babilônia: "O Senhor destruiu sem piedade todos campos de Jacó; em Sua ira deitou abaixo as fortificações da cidade de Judá; lançou por terra, aviltou a realeza e seus príncipes. Sentados no chão, em silêncio, os anciãos da cidade de Sião espalharam cinza na cabeça, vestiram-se de saco; as jovens de Jerusalém inclinaram a cabeça para o chão. Meus olhos estão inchados de lágrimas, fervem minhas entranhas; derrama-se por terra meu fel diante da arruinada cidade de meu povo, vendo desfalecerem tantas crianças pelas ruas da cidade. Elas pedem às mães: 'O trigo e o vinho, onde estão?' E vão caindo como derrubadas pela morte nas ruas da cidade, até expirarem no colo das mães." Lm 2,2.10-12
    De fato, como os chefes dos sacerdotes e o povo de Israel não acolhiam Seus Profetas, Ele usou da brutalidade dos inimigos exércitos para corrigir Seu povo. São registros do Segundo Livro de Crônicas: "Em vão o Senhor, Deus de seus pais, havia-lhes enviado avisos sobre avisos por meio de Seus mensageiros, pois tinha compaixão de Seu povo e de Sua própria habitação. Eles zombavam de Seus enviados, desprezavam Seus conselhos e riam de Seus Profetas, até que a ira de Deus se desencadeou sobre Seu povo e não houve mais remédio. Então Deus suscitou contra eles o rei dos caldeus, que, no próprio edifício do Santuário, mandou matar Seus jovens, e não poupou nem o adolescente, nem a donzela, nem o ancião, nem a mulher de cabelos brancos. O Senhor entregou-lhe tudo." 2 Cr 36,15-17
    Tanto que no Livro do Profeta Jeremias, este renomado homem de Deus vai clamar: "Derramai esse furor sobre as nações que Vos desconhecem, sobre os povos que não invocam Vosso Nome, pois eles devoraram Jacó e o consumiram, transformando-lhe as casas em deserto." Jr 10,25
    Mas Deus realmente mostrou-Se indiferente às graves agressões contra Israel, como reclamava o Livro do Profeta Habacuc, que apesar das perversões seguia chamando Judá de 'o justo': "Até quando, Senhor, implorarei sem que escuteis? Até quando Vos clamarei: 'Violência!', sem que venhais em socorro? Por que me mostrais o espetáculo da iniquidade, e contemplais Vós mesmo essa desgraça? Só vejo opressão e violência diante de mim, nada mais que discórdias e contendas, porque a Lei se acha desacreditada e não se vê mais a justiça. Porque o ímpio cerca o justo, e a equidade encontra-se falseada." Hab 1,2-4
    Ademais, como visto, os Profetas de Deus também eram encarregados de anunciar Seus castigos. Foi o que fez Isaías, cem anos antes, ao falar do símbolo máximo da ira de Deus: Seu Dia: "Lamentai-vos, porque o Dia do Senhor está próximo como uma devastação provocada pelo Todo-poderoso. Eis que virá o Dia do Senhor, implacável Dia, de furor e de ardente cólera, para reduzir a Terra a um deserto e dela exterminar os pecadores." Is 13,6.9
    No Livro do Profeta Ezequiel, no mesmo sentido, sem distinguir temporalidade de eternidade, este que também era sacerdote via para breve o Julgamento das nações de então. De fato, assim como o permanente Juízo Particular, o Julgamento iniciou-se desde o mero proferimento da Palavra pelo Cristo: "Porque está próximo o Dia, está próximo o Dia do Senhor, dia carregado de nuvens, dia marcado para as nações." Ez 30,3
    Ora, o Livro do Profeta Joel, de um século depois do rei Salomão, já atestava que ele havia sido testemunha de pesarosas visões da assembleia do Juízo Final, quando ocorrerá assombrosos e celestiais fenômenos: "O sol converter-se-á em trevas e a lua em sangue, ao aproximar-se o grandioso e temível Dia do Senhor. Que multidão, que multidão no vale do Julgamento, porque chegou o Dia do Senhor no vale do Julgamento!" Jl 3,4; 4,14
    O Livro do Profeta Amós, seu subsequente, lamenta por aqueles que tratam o Dia do Juízo com insolência: "Ai daqueles que desejam ver o Dia do Senhor! Que será para vós o Dia do Senhor? Trevas, e não luz!" Am 5,18
    E o Livro do Profeta Sofonias, de século e meio mais tarde, exercitava o povo no temor ao Senhor pedindo penitência: "Curvai-vos, curvai-vos, gente sem pudor, antes que nasça a sentença e o dia passe como a palha. Antes que caia sobre vós o ardor da ira do Senhor; antes que caia sobre vós o Dia da indignação do Senhor! Buscai o Senhor, vós todos, humildes da Terra, que observais Sua Lei. Buscai a justiça e a humildade: talvez assim estareis ao abrigo no Dia da cólera do Senhor." Sf 2,1-3
    Na verdade, hoje sabemos, são dois Juízos: primeiro o Particular, pessoal, da alma, que é imediato e se dá logo após a morte, como previsto pelo seguidores da tradição de São Paulo na Cartas aos Hebreus: "Como está determinado que os homens morram uma só vez, e logo em seguida vem o Juízo..."Hb 9,27
    E ao fim dos tempos haverá o Juízo Final, quando todos ressuscitarão como Jesus explicou no Evangelho segundo São João, referindo-Se à Sua própria voz. Foi logo em Sua segunda festa em Jerusalém, depois que começou Sua vida pública, quando os líderes judeus começaram a tramar Sua morte: "Não vos maravilheis disso, porque vem a hora em que todos que se acham nos sepulcros sairão deles ao som de Sua voz: os que praticaram o bem irão para a Ressurreição da Vida, e aqueles que praticaram o mal, ressuscitarão para serem condenados." Jo 5,29
    O atual inferno, para onde seguem as más almas, ainda não é a definitiva condenação. E a ira de Deus, de tão real e efetiva, tem-se manifestado de tal forma que os maus anjos, Satanás entre eles, já foram punidos. Diz a Segunda Carta de São Pedro: "Pois se Deus não poupou os anjos que pecaram, mas precipitou-os nos tenebrosos abismos do inferno onde os reserva para o Julgamento..." 2 Pd 2,24
    Mas só no Juízo Final é que, em definitivo, o Senhor fará valer Seu anátema. Será a própria Palavra de Jesus, segundo Ele mesmo, que disse em Jerusalém após o Domingo de Ramos: "Se alguém ouve Minhas palavras e não as guarda, Eu não o condenarei, porque não vim para condenar o mundo, mas para salvá-lo. Quem Me despreza e não recebe Minhas palavras, tem quem o julgue: a Palavra que anunciei julgá-lo-á no Último Dia." Jo 12,47-48
    Na parábola das ovelhas e dos cabritos, que consta do Evangelho segundo São Mateus, Ele pronunciou-o, dias antes de Sua última Páscoa: "Retirai-vos de Mim, malditos! Ide para o eterno fogo destinado ao Demônio e aos seus anjos." Mt 25,41
    E ainda com mais violência na parábola das minas, agora no Evangelho segundo São Lucas, enquanto fazia Sua última subida a Jerusalém: "Quanto aos que Me odeiam, e que não Me quiseram por rei, trazei-os e massacrai-os em Minha presença." Lc 19,27
    O definitivo inferno, pois, é a chamada segunda morte, conforme as últimas revelações de Nosso Senhor a São João Apóstolo, que ele anotou quase ao fim do Livro do Apocalipse: "A morte e a morada subterrânea foram lançadas no lago de fogo. A segunda morte é esta: o lago de fogo." Ap 20,14
    De fato, noticiando expressamente a ira de Deus, Jesus também usou de contundência ao avisar sobre o eterno fogo. Ele disse a Seus discípulos após a Santa Ceia: "Se alguém não permanecer em Mim será lançado fora, como o ramo. Ele secará e hão de ajuntá-lo e lançá-lo ao fogo, e queimar-se-á." Jo 15,6
    Disse-o de várias formas, e magistralmente quando exortou a um verdadeiro distanciamento de pecaminosos hábitos, após anunciar Sua Paixão pela segunda vez, como se lê no Evangelho segundo São Marcos: "Se tua mão for para ti ocasião de queda, corta-a; melhor é entrares na Vida aleijado que, tendo duas mãos, ires para a geena, para o inextinguível fogo. Se teu pé for para ti ocasião de queda, corta-o fora; melhor é entrares coxo na Vida Eterna que, tendo dois pés, seres lançado à geena do inextinguível fogo. Se teu olho for para ti ocasião de queda, arranca-o; melhor é entrares com um olho de menos no Reino de Deus que, tendo dois olhos, seres lançado à geena do fogo, onde seu verme não morre e o fogo não se apaga." Mc 9,43.45.47-48
    Sem dúvida, falava de punições que não serão nem um pouco brandas: "Mas todo aquele que fizer cair em pecado a um destes pequeninos, que creem em Mim, melhor lhe fora que uma pedra de moinho lhe fosse posta ao pescoço e lançassem-no ao mar!" Mc 9,42
    Trair a Deus, então, como foi o caso de Judas, é submeter-se a um indizível castigo. Jesus mesmo sentenciou, à mesa da Santa Ceia, diante deste Seu infame Apóstolo: "O Filho do Homem vai, como d'Ele está escrito. Mas ai daquele homem por quem o Filho do Homem é traído! Para esse homem melhor seria que jamais tivesse nascido!" Mt 26,24
    Enfim, Ele igualmente distinguiu entre a primeira e a segunda morte enquanto preparava os Apóstolos, após escolher os Doze. E aqui vemos d'Ele próprio uma advertência quanto à ira de Deus: "Não temais aqueles que matam o corpo, mas não podem matar a alma. Antes temei Àquele que pode precipitar a alma e o corpo na geena." Mt 10,28
    Assim como indicava duas ocasiões para o misericordioso perdão de Deus, para o qual não se requer o devido arrependimento, como numa das vezes em que induziu à questão do Purgatório, falando sobre o mistério do Reino dos Céus: "Todo aquele que tiver falado contra o Filho do Homem, será perdoado. Se, porém, falar contra o Espírito Santo, não alcançará perdão nem neste século nem no vindouro." Mt 12,32


CRISTO, NOSSO ADVOGADO

    Se a ira de Deus parece por demais pesada, e todos esses castigos causam algum pavor, convém que tenhamos sempre presente, como dissemos, a flagelação que foi a Paixão de Cristo, Seu ato máximo de amor para redimir-nos e livrar-nos da perdição. Os discípulos de São Paulo escreveram: "Por isso, Ele é o Mediador do Novo Testamento. Por Sua morte expiou os pecados cometidos no decorrer do Primeiro Testamento, para que os eleitos recebam a eterna herança que lhes foi prometida." Hb 9,15
    Devemos-Lhe, portanto, obediência: "E uma vez chegado ao fim de Sua vida terrena, tornou-Se Autor da Eterna Salvação para todos que Lhe obedecem..." Hb 5,9
    Pois depois de viver a condição humana, Ele sentou-Se à direita do Pai como Nosso Defensor: "Eis porque Cristo entrou, não em santuário feito por mãos de homens, que fosse apenas figura do verdadeiro Santuário, mas no próprio Céu, para agora Se apresentar em nosso favor ante a face de Deus." Hb 9,24
    Céu esse que foi aberto a nós por Seu Preciosíssimo Sangue: "Por esse motivo, irmãos, temos ampla confiança de poder entrar no Eterno Santuário, em virtude do Sangue de Jesus..." Hb 10,19
    De fato, Sua chegada aos Céus foi precedida da expulsão do inimigo, porque tendo vencido o pecado, e pelo Mandamento do amor, Ele abriu-nos o Caminho da Redenção. O Amado Discípulo, entre tantas revelações, ouviu uma forte voz no Céu: "Agora chegou a Salvação, o poder e a realeza de Nosso Deus, assim como a autoridade de Seu Cristo, porque foi precipitado o acusador de nossos irmãos, que dia e noite os acusava diante do Nosso Deus." Ap 12,10
    Essa é a razão pela qual, na Primeira Carta de São João, ele nos diz com carinho e esperança: "Filhinhos meus, isto escrevo-vos para que não pequeis. Mas se alguém pecar, temos um advogado junto ao Pai, Jesus Cristo, o Justo." 1 Jo 2,1
    Diz mais, explicitando como Ele nos purifica: "Se, porém, andamos na Luz como Ele mesmo (Deus) está na Luz, temos recíproca Comunhão uns com os outros, e o Sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, purifica-nos de todo pecado." 1 Jo 1,7
    E a Primeira Carta de São Paulo a São Timóteo diz a Quem devemos gratidão: a Jesus, o Ser Humano. De fato, tal mediação já significou a própria Salvação, pois Jesus é Deus, e sendo Deus não precisaria interceder: "Porque há um só Deus e há um só Mediador entre Deus e os homens: Jesus Cristo, um Homem que como resgate Se entregou por todos." 1 Tm 2,5-6a
    Pois mesmo entre nem sempre compreensíveis desígnios, essa é a essência do projeto do Pai, como atesta a Primeira Carta de São Paulo aos Tessalonicenses em últimas exortações: "Porquanto Deus não nos destinou para a ira, mas para alcançar a Salvação por Nosso Senhor Jesus Cristo." 1 Ts 5,9
    Porque falando de Nosso Salvador, o Último Apóstolo havia iniciado: "É Ele que nos liberta da futura ira." 1 Ts 1,10
    São João Batista também se pronunciou sobre a ira de Deus, e, como única solução, apontava para a Redenção oferecida na Pessoa de Cristo. É seu discurso antes de ser preso, quando soube que Jesus já havia iniciado Seu Ministério: "Aquele que crê no Filho tem a Vida Eterna. Quem não crê no Filho não verá a Vida, mas sobre ele pesa a ira de Deus." Jo 3,36


LIVRAR-SE DA IRA DE DEUS
    
    Com razão, o Batista não via sinceridade entre aqueles que vinham batizar-se com ele, mas apenas temor aos castigos de Deus. Por isso, fustigava-os com duras palavras: "Ao ver, porém, que muitos dos fariseus e dos saduceus vinham ao seu batismo, disse-lhes: 'Raça de víboras, quem vos ensinou a fugir da vindoura cólera? Dai, pois, frutos de verdadeira penitência.'" Mt 3,7
    São Lucas também registrou essa exigência feita pelo Último Profeta (cf. Mt 11,13): "Fazei, pois, uma realmente frutuosa conversão..." Lc 3,8
    Apontando os desmandos dos religiosos da época, Jesus dizia algo parecido, prometendo ajuste de contas como que contra um único e comum inimigo, e que remontará o sangue de Abel. Ele acusou os escribas e fariseus, em Sua última semana em Jerusalém: "Serpentes! Raça de víboras! Como escapareis ao castigo do inferno? Vede! Eu envio-vos Profetas, sábios, doutores! Matareis e crucificareis uns, e açoitareis outros em vossas sinagogas. Persegui-los-eis de cidade em cidade, para que sobre vós todos caia o inocente sangue derramado sobre a terra, desde o sangue de Abel, o justo, até o sangue de Zacarias, filho de Baraquias, a quem matastes entre o Templo e o Altar." Mt 23,33-35
    Era o desfecho dos oito retumbantes 'Ai de vós', dois quais aqui citamos os três primeiros: "Ai de vós, hipócritas escribas e fariseus! Vós fechais aos homens o Reino dos Céus. Vós mesmos não entrais e nem deixais que entrem os que querem entrar. Ai de vós, hipócritas escribas e fariseus! Devorais as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Por isso, sereis castigados com muito maior rigor. Ai de vós, hipócritas escribas e fariseus! Percorreis mares e terras para fazer um prosélito e, quando o conseguis, dele fazeis um filho do inferno duas vezes pior que vós mesmos." Mt 23,13-15
    Também profetizou a destruição de cidades onde operou Seus milagres, nos primeiros feitos de Sua Missão, ainda na Galileia: "Depois Jesus começou a censurar as cidades, onde tinha feito grande número de Seus milagres, por terem recusado arrepender-se: 'Ai de ti, Corozaim! Ai de ti, Betsaida! Porque se em Tiro e em Sidônia tivessem sido feitos os milagres que foram feitos em vosso meio, há muito tempo elas teriam-se arrependido sob o cilício e a cinza. Por isso, digo-vos: no dia do Juízo haverá menor rigor para Tiro e para Sidônia que para vós! E tu, Cafarnaum, serás elevada até o Céu? Não! Serás atirada até o inferno! Porque se Sodoma tivesse visto os milagres que foram feitos dentro de teus muros, subsistiria até este dia. Por isso, digo-te: no Dia do Juízo haverá menor rigor para Sodoma que para ti!'" Mt 11,20-24
    Assim como a destruição de Jerusalém, que ocorreria no ano 70 de nossa era. Ele proferiu estas palavras antes da Páscoa de Seu Sacrifício: "Aproximando-Se ainda mais, Jesus contemplou Jerusalém e por ela chorou, dizendo: 'Oh! Se tu, ao menos neste dia que te é dado, também conhecesses Aquele que pode trazer-te a Paz!... Mas não... Isso está oculto a teus olhos. Sobre ti virão dias em que teus inimigos te cercarão de trincheiras, te sitiarão e te atacarão por todos lados. Destruí-te-ão a ti e a teus filhos que estiverem dentro de ti, e em ti não deixarão pedra sobre pedra, porque não conheceste o tempo em que foste visitada.'" Lc 19,41-44
    Falando sobre a gravidade dos recorrentes pecados em Israel, e suas respectivas punições, Ele havia tomado como exemplo dois fatos que haviam impressionado o povo, mostrando o quanto a mão de Deus pode ser pesada: "Neste mesmo tempo, contavam alguns o que tinha acontecido a certos galileus, cujo sangue Pilatos misturara a seus sacrifícios. Jesus toma a palavra e pergunta-lhes: 'Pensais vós que estes galileus foram maiores pecadores que todos outros galileus, por terem sido tratados desse modo? Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos de mesmo modo. Ou cuidais que aqueles dezoito homens, sobre os quais a torre de Siloé caiu e matou-os, foram mais culpados que todos demais habitantes de Jerusalém? Não, digo-vos. Mas se não vos arrependerdes, perecereis todos de mesmo modo.'" Lc 13,1-5
    No mesmo sentido, a Carta de São Paulo aos Gálatas, chamando-os de insensatos por desvios já dentro do cristianismo, prega a purificação do corpo e da alma para que não mais ofendêssemos o Pai Celeste: "Mortificai vossos membros, pois, no que têm de terreno: a devassidão, a impureza, as paixões, os maus desejos, a cobiça, que é uma idolatria. Dessas coisas provém a ira de Deus sobre os descrentes." Cl 3,5-6
    Também condenava a insana hipocrisia de alguns, que profanam a própria Eucaristia, como a Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios questiona: "Não podeis beber ao mesmo tempo o Cálice do Senhor e o cálice dos demônios. Ou queremos provocar a ira do Senhor? Acaso somos mais fortes que Ele?" 1 Cor 10,21-22
    Aliás, o simples fato de negarmo-nos a testemunhar a Verdade sobre as frequentes Graças que nos são concedidas por Deus, já nos faz merecedores de Seus castigos. O Apóstolo dos Gentios recomenda: "A ira de Deus manifesta-se do alto do Céu contra toda impiedade e perversidade dos homens, que pela injustiça aprisionam a Verdade." Rm 1,18
    E se a ira de Deus é santa, na grande maioria dos casos estamos desautorizados a recorrer-nos à violência. Nem mesmo para vingar-nos, dela poderíamos lançar mão: "Não vos vingueis uns aos outros, caríssimos, mas deixai agir a ira de Deus, porque está escrito: 'A Mim a vingança! A Mim exercer a justiça', diz o Senhor (Dt 32,35)." Rm 12,19
    E ainda que o ódio tome conta de nosso coração, não devemos esboçar nenhuma reação de raiva nem guardar rancor através de uma noite sequer, como leciona a Carta de São Paulo aos Efésios: "Mesmo em cólera, não pequeis. Não se ponha o sol sobre vosso ressentimento." Ef 4,26
    O próprio Arcanjo São Miguel, chefe dos Celestes Exércitos, em um belo exemplo de estrita obediência, não se manifestou contra o Maligno sem a expressa ordem de Deus. A Carta de São Judas relata: "No entanto, o Arcanjo Miguel, quando com o Diabo disputava o corpo de Moisés, não se atreveu a lançar-lhe em rosto uma injuriosa invectiva. Mas apenas disse-lhe: 'O Senhor te repreenda!'" Jd 9
    A Carta de São Tiago, por sinal, faz questão de desfazer o errôneo argumento de que nós poderíamos ser, por nossa livre escolha, instrumentos da divina ira: "... a ira do homem não cumpre a justiça de Deus." Tg 1,20
    O próprio Jesus dela não lançava mão, mas, como numa ocasião de passagem pela Samaria, aproveitava para revelar Sua Missão: "Enviou diante de Si mensageiros que, tendo partido, entraram em uma povoação dos samaritanos para arranjar-Lhe pousada. Mas não O receberam, por Ele dar mostras que ia para Jerusalém. Vendo isto, Tiago e João disseram: 'Senhor, queres que mandemos que desça fogo do Céu e os consuma?' Jesus voltou-Se e severamente repreendeu-os: 'Não sabeis de que espírito sois animados. O Filho do Homem não veio para perder as vidas dos homens, mas para salvá-las.' Foram, então, para outra povoação." Lc 9,52-56
    Mas Ele poderia mesmo dispor de forças sobrenaturais como o Celestial Exército, como disse a São Pedro quando estava para ser preso pelos guardas dos sacerdotes no Horto das Oliveiras: "Jesus, no entanto, disse-lhe: 'Embainha tua espada, porque todos aqueles que usarem da espada, pela espada morrerão. Crês tu que não posso invocar Meu Pai e Ele não Me enviaria imediatamente mais de doze legiões de anjos?'" Mt 26,52-53
    Contudo, tomando como principal exemplo a paciência do próprio Pai, Ele abertamente praticava e pregava tolerância, como se vê no Sermão da Montanha, nas proximidades de Cafarnaum, ainda no começo de Seu ministério: "Tendes ouvido o que foi dito: 'Olho por olho, dente por dente.' Eu, porém, digo-vos: não resistais ao mau! Se alguém te ferir a face direita, oferece-lhe também a outra. Se alguém te citar em justiça para tirar-te a túnica, cede-lhe também a capa. Se alguém vem obrigar-te a andar mil passos com ele, anda dois mil. Dá a quem te pede e não te desvies daquele que quer pedir-te emprestado. Tendes ouvido o que foi dito: 'Amarás teu próximo e poderás odiar teu inimigo.' Eu, porém, digo-vos: amai vossos inimigos, fazei bem aos que vos odeiam, orai pelos que vos maltratam e perseguem. Deste modo, sereis filhos de Vosso Pai do Céu, pois Ele faz nascer o sol tanto sobre os maus como sobre os bons, e faz chover sobre os justos e sobre os injustos. Se amais somente os que vos amam, que recompensa tereis? Não fazem assim os próprios publicanos? Se saudais apenas vossos irmãos, que fazeis de extraordinário? Também não fazem isto os pagãos? Portanto, sede perfeitos, assim como Vosso Pai Celeste é perfeito." Mt 5,38-48
    Deixava mesmo o grande acerto de contas para o Juízo Final, como pregou antes de voltar a Nazaré em despedida: "Jesus propôs-lhes outra parábola: 'O Reino dos Céus é semelhante a um Homem que tinha semeado boa semente em Seu campo. Na hora, porém, em que os homens repousavam, veio Seu inimigo, semeou joio no meio do trigo e partiu. O trigo cresceu e deu fruto, mas também apareceu o joio. Os servidores do Pai de Família vieram e disseram-Lhe: Senhor, não semeaste bom trigo em Teu campo? De onde vem, pois, o joio? Disse-lhes Ele: Foi um inimigo que fez isto! Replicaram-Lhe: Queres que vamos e arranquemo-lo? Não, disse Ele, arrancando o joio, arriscais a tirar também o trigo. Deixai-os crescer juntos até a colheita. No tempo da colheita, direi aos ceifadores: arrancai primeiro o joio e atai-o em feixes para queimá-lo. Depois recolhei o trigo em Meu celeiro.'" Mt 13,24-30
    A não ser no caso dos vendilhões do Templo! Mas ai era o Santo Lugar por excelência, um pedaço do Céu, a Casa de Deus, que Ele identificaria como Seu próprio Corpo. São João Evangelista narra este episódio como dado logo em Sua primeira visita a Jerusalém em vida pública: "Encontrou no Templo negociantes de bois, ovelhas e pombas, e mesas dos trocadores de moedas. Fez Ele um chicote de cordas, expulsou todos do Templo, como também as ovelhas e os bois, espalhou pelo chão o dinheiro dos trocadores e derrubou as mesas. Disse aos que vendiam as pombas: 'Tirai isto daqui e não façais da Casa de Meu Pai uma casa de negociantes!' Lembraram-se, então, Seus discípulos do que está escrito: 'O zelo de Tua Casa consome-Me (Sl 68,10).' Perguntaram-Lhe os judeus: 'Que sinal nos apresentas Tu, para procederes deste modo?' Respondeu-lhes Jesus: 'Destruí vós este Templo, e em três dias Eu reerguer-lo-ei.'" Jo 2,14-19
     E São Paulo, confirmando nossa obrigação de promotores da Paz, recomenda nossa submissão a todas autoridades e instituições, ainda que mundanas: "Cada qual seja submisso às autoridades constituídas, porque não há autoridade que não venha de Deus. As que existem foram instituídas por Deus. Assim, aquele que resiste à autoridade, opõe-se à ordem estabelecida por Deus e os que a ela se opõem, atraem sobre si a condenação. Queres não ter o que temer a autoridade? Faze o bem e terás seu louvor. Porque ela é instrumento de Deus para teu bem. Mas se fizeres o mal, teme, porque não é sem razão que leva a espada: é ministro de Deus, para fazer justiça e exercer a ira contra aquele que pratica o mal." Rm 13,1-4
    Por inspiração, ele constatou que os religiosos responsáveis pela morte de Jesus já estão sob o peso da mão de Deus: "... aqueles judeus que mataram o Senhor Jesus, que nos perseguiram, que não são do agrado de Deus, que são inimigos de todos homens, visto que nos proíbem pregar aos não judeus para que se salvem. E com isto vão enchendo sempre mais a medida de seus pecados. Mas a ira de Deus acabou por atingi-los." 1 Ts 2,15-16
    Aliás, relembrava aos não-judeus, em advertência, os castigos que recaíram sobre todo Israel: "Declaro-o a vós, homens de pagã origem: como Apóstolo dos pagãos, eu procuro honrar meu Ministério com o intuito de, eventualmente, excitar à imitação os homens de minha raça e salvar alguns deles. Se alguns dos ramos foram cortados, e se tu, selvagem oliveira, foste enxertada em seu lugar e agora recebes seiva da raiz da oliveira, não te envaideças nem menosprezes os ramos. Pois, se te gloriares, sabe que não és tu que sustentas a raiz, mas a raiz a ti. Não te ensoberbeças, antes teme. Se Deus não poupou os ramos naturais, bem poderá não poupar a ti." Rm 11,13-14.17-18.20a-21
    E via no lento vagar dos tempos a paciência de Deus, à espera de nossa sincera conversão: "Ou desprezas as riquezas de Sua bondade, tolerância e longanimidade, desconhecendo que a bondade de Deus te convida ao arrependimento? Mas pela tua obstinação e impenitente coração, vais acumulando ira contra ti, para o Dia da Cólera e da revelação do justo Juízo de Deus..." Rm 2,4-5
    Santo de grandes revelações, ele claramente percebia como é grande nossa infidelidade, mas também a serena paciência e as devidas correções de Deus: "Se nossa injustiça realça a justiça de Deus, o que podemos dizer? Que Deus é injusto quando sobre nós descarrega Sua ira?" Rm 3,5
    Entretanto, atestando a veracidade da divina ira, o Livro do Apocalipse fala dos flagelos previstos para assolar a humanidade no fim dos tempos. O Amado Discípulo registrou: "No Céu, ainda vi outro grande e maravilhoso sinal: sete Anjos que tinham os últimos sete flagelos, porque por eles é que se deve consumar a ira de Deus." Ap 15,1
    Também diz que estes anjos de Deus, em geral sempre tão dóceis criaturas, serão incumbidos de espalhar essas punições: "Ouvi, então, uma forte voz saindo do Templo, que dizia aos sete Anjos: 'Ide, e derramai sobre a Terra as sete taças da ira de Deus.'" Ap 16,1
    E já nos havia sido revelado um específico lugar, onde por completo se manifestarão os castigos da divina ira, pois de lá Deus Se ausentará. É o definitivo inferno, como vimos, o chamado lago de fogo: "O anjo lançou sua foice à Terra e vindimou a vinha da Terra, e atirou os cachos no grande lagar da ira de Deus." Ap 14,19
    Pois o próprio Jesus não via conserto para o mundo, como disse a poucos dias de Sua Crucificação: "E ante o crescente progresso da iniquidade, a caridade de muitos resfriará." Mt 24,12
    Chegou mesmo a perguntar-Se enquanto preparava os Apóstolos, depois que mais uma vez anunciou Sua Paixão: "Mas quando vier o Filho do Homem, acaso achará sobre a Terra?" Mt 18,8b
    Por fim, prometido grandioso, como visto, além de assustador, no Dia da ira de Deus dar-se-á a completa renovação do Universo, como foi profetizado pelo Príncipe dos Apóstolos: "Entretanto, o Dia do Senhor virá como o ladrão. Naquele dia, os céus passarão com ruído, os elementos abrasados dissolver-se-ão, e a Terra será consumida com todas obras que ela contém." 2 Pd 3,10
    Quanto ao dia e à hora em que essas coisas ocorrerão, porém, assim como a muitas vezes insuspeita ira de Deus, Jesus fez questão de notificar aos Onze da permanência dos mistérios até o último instante. O Livro dos Atos dos Apóstolos põe em primeiros versículos: "Não pertence a vós saber os tempos nem os momentos que o Pai fixou por Seu poder..." At 1,7

    "Esperamos, ó Cristo, Vossa gloriosa Vinda!"