domingo, 14 de dezembro de 2025

São João da Cruz


    Filho de Gonzalo de Yepes, nobre que foi deserdado por casar-se com plebeia, e que logo viria a falecer, Juan de Yepes Álvarez viveu muito modesta infância: um de seus dois irmãos teria morrido de desnutrição. Nascido a 24 de junho de 1542, na pobre vila de Fontiveros, da província de Ávila, centro de Espanha, sua dedicada mãe, Catalina Álvarez, bem que tentou melhor sorte em outros lugares, mas sempre acabavam regressando.
    Em 1551, quando tinha 9 anos, mudaram-se para Medina del Campo, na província de Valladolid, e como pobre foi admitido no Colégio de Doutrina, de instituição religiosa para órfãos, onde tinha tarefas como auxiliar na faxina do convento, na Santa Missa, nos funerais e pedir esmolas. Também aprendia vários ofícios, trabalhando como ajudante de carpinteiro, de alfaiate, de pintor e de entalhador. Sem muita habilidade manual, porém, terminou mesmo ficando na sacristia.
    De fato, sua inteligência era facilmente percebida, e o diretor de um hospital que atendia pobres acabou por contratá-lo, provavelmente por recomendação das freiras, como empregado pessoal ainda em sua adolescência. Assim, trabalhando durante o dia e estudando à noite, à luz de vela, aos 17 anos este senhor, Álvarez de Toledo, conseguiu que os jesuítas lhe oferecessem um curso de Humanidades. O sofrimento dos doentes no hospital, porém, principalmente daqueles que sofriam de sífilis, ele nunca mais esqueceria.
    Completado os estudos em 1563 e reconhecido por sua maturidade e espiritualidade, sentindo o chamado de Deus para a vida religiosa, por amor a Nossa Senhora entra para a Ordem do Carmelo, no Convento de Santa Ana, em Medina mesmo, e pretende manter-se leigo, mas seus superiores não lhe permitem. Com louvor, pois lia bastante, forma-se em Filosofia e Letras na Universidade de Salamanca, onde foi admitido graças a seu excelente latim, e em 1567 é ordenado Sacerdote. Contudo, como aí estava residindo no Colégio Carmelita de San Andrés, onde foi eleito prefeito dos estudantes, fica profundamente desiludido com a vida de facilidades dos confrades de então: tinha apenas um amigo, Pedro de Orozco.
    Tenta entrar na Ordem dos Cartuxos, que é bem mais rigorosa, essencialmente contemplativa, devotada à profunda guarda do silêncio, mas ao encontrar-se com Santa Teresa d'Ávila em Medina foi convencido a colaborar com sua reforma da Ordem Carmelita, fundando o primeiro mosteiro masculino. A Ordem Carmelita Descalça, que nossa Santa havia instituído, retomava uma constituição carmelita mais rigorosa, a chamada Regra de Santo Alberto, e assim foi nomeada por recusar os sapatos de couro da época, usado pelos nobres, e voltar ao uso das sandálias como parte do hábito.


    E em viagem a Valladolid, onde Santa Teresa, que o via como "grande aos olhos de Deus", estava fundando um novo convento para mulheres, ele vestiu o hábito de carmelita descalça e mudou seu nome de frade, de João de São Matias para João da Cruz. Tinha 25 anos e um contagiante fervor religioso. Baseando-se na 'experiência do deserto', passou a rever os hábitos de disciplina e os princípios de sua congregação. Eleito reitor de uma pequena casa de formação de noviços no povoado de Duruelo, por sete anos diligentemente empregou seus conhecimentos, assim como exercícios espirituais, em especial os contemplativos, com relativo sucesso.
    E ensinava a oração mental contínua e a adoração ao Santíssimo Sacramento quando Santa Teresa foi eleita priora no Convento da Encarnação, na cidadela de Ávila. Ela convidou-o para ser confessor, onde vai trabalhar por cinco anos. Aí pintou o célebre quadro 'Cristo na Cruz', que usava para contemplar. Já era reconhecido como Santo.
    Os carmelitas tradicionais, porém, desaprovavam-no. E com o fechamento de todos novos conventos de carmelitas descalços que não tinham a aprovação do superior geral, por decisão do Capítulo Geral da ordem de 1575, na comuna de Piacenza, norte de Itália, eles encontraram oportunidade para anular sua obra. De fato, apesar de sua natural timidez, pelo rigor que imprimia em suas práticas e pela tenaz persistência foi considerado rebelde, perturbador da paz. Foi preso e levado a Medina, onde ficou por alguns dias, mas acabou libertado a pedido do nuncio papal, que simpatizava com os descalços.
    Em 1577, o vistante geral da ordem pediu que ele renunciasse a seu encargo de confessor do Convento da Encarnação, mas ele resistiu dizendo que foi empossado pelo visitador apostólico e lhe devia obediência. Depois o visitante geral se pôs contra a reeleição de Santa Teresa como priora deste convento, que teve o apoio de São João da Cruz, e por meio do superior provincial excomungou todas suas votantes
    Quanto a ele, acabou ocultamente sequestrado e preso durante 9 meses num ínfimo cubículo, no Convento de Toledo, por monges contrários a suas propostas de reforma, que não se continha em anunciar. Tentaram de tudo para que renunciasse a suas ideias, inclusive por psicológicas e físicas torturas. Por duas vezes, foi açoitado. O lugar só tinha uma fresta de luz do sol no alto da parede. Atiravam-lhe comida ao chão uma vez ao dia. Quando o levavam ao refeitório, recebia pão e água, ouvia advertências do prior e cada frade golpeava-o às costas com um bastão. 'Esqueciam' de recolher o balde com suas fezes e urina, e o forte mal cheiro provocava-lhe vômito. Dormia sobre uma tábua, com apenas duas cobertas. Sofreu frio no inverno e calor no verão, sempre com o mesmo hábito, que não lhe permitiam lavar. Ensanguentado, ele grudava nas feridas, apodrecia e ficava cheio de larvas. Teve infestação de piolhos.
    Bem aproveitou esse período, entretanto, para ainda mais meditar e escrever. Aí nasce a poética obra 'Cântico Espiritual'. Por conta da torpeza em que o mundo vive, dizia que sua missão, assim como a de Cristo, era: "Padecer e morrer." Revelava-se aí os rebentos daquele que seria reconhecido como um dos maiores místicos da Igreja! Aceitando qualquer sofrimento para anunciar o amor de Deus aos irmãos, provava que havia alcançado uma superior visão da realidade: a perfeita Comunhão com o Criador.


    Mas numa enluarada noite de agosto, o novo carcereiro, tocado por sua candente devoção, em compaixão deixou-o fugir. Agradecido, nosso Santo entrega-lhe uma cruz de madeira que ali mesmo entalhou, na pequeníssima cela, como um pedido de desculpas pelo trabalho que dera a todos. Escondeu-se no convento das carmelitas descalças, onde, felizes por vê-lo, lhe preparam peras assadas com canela, sobremesa que a ele tanto deliciava. Bem acolhido num aposento à parte, as freiras iam ter com ele toda tarde, para ouvir suas inspiradas reflexões. Entretanto, como seu estado de saúde era realmente frágil, e se via muito magro, por dois meses foi entregue aos cuidados do administrador do hospital de Toledo.
    Com o sucesso da ordem descalça, é convidado para elevados encargos, como prior do Mosteiro de Nossa Senhora do Monte Calvário, perto de Beas de Segura, na província de Jaén, e depois prior do Convento dos Santos Mártires de Granada, em Andaluzia,.assim como para a preparação de aspirantes em novos mosteiros, que estavam em fundação. Contudo, em desacordo com suas diretrizes, logo se insurgiam opositores entre os novos superiores.
    Nas reuniões do Capítulo de Madrid, em 1591, a ordem publicamente anunciou sua destituição de todo e qualquer encargo. Oferecem-lhe uma vaga como mero frade no convento de Segóvia, mas ele pede para servir como missionário em México e vai aguardar a resposta no convento de Peñuela, onde será 'esquecido'. Aí sofrerá uma grave inflamação na perna direita e terá fortes febres. Levaram-no a Úbeda, onde fora prior e ainda era amado por todos, porém a enfermidade era fatal.
    Em suas frequentes contemplações, era arrebatado em êxtases espirituais e tinha visões. Tentou traduzir tudo em palavras, e assim nos presenteou com belíssimas obras como 'Noite escura da alma', 'Subida ao Monte Carmelo', 'Chama viva de amor' e 'A justiça e o amor'. Mas a verdade é que enquanto se aprofundava na autêntica espiritualidade cristã, padecia cada vez mais e maiores incompreensões.


    Por seus escritos, porém, foi reconhecido como Doutor da Igreja, com o título de "Doctor Mysticus", Doutor Místico. São suas pérolas:

    "Renuncia aos desejos e encontrarás o que teu coração deseja."
    "Se quiseres chegar ao santo recolhimento, mais que consentindo hás de ir negando."
    "O Caminho da Vida é de muito pouco barulho e pretensão, e requer mais mortificação da vontade que muito saber. Quem menos se agarrar às coisas e aos gostos, mais por ele avançará."
    "É melhor vencer-se na língua que jejuar pão e água."
    "Mesmo carregado de grandes e molestas tentações, desde que sua razão e vontade nelas não consintam, o homem pode ir a Deus."
    "A constância de ânimo, com Paz e tranquilidade, não só enriquece a pessoa como muito a ajuda a melhor julgar as adversidades, dando-lhes a conveniente solução."
    "Preservando as portas da alma, isto é, os sentidos, grandemente preservam-se e aumentam-se a tranquilidade e a pureza."
    "Se queres que em teu espírito nasça a devoção, e que o amor a Deus e o gosto pelas divinas coisas aumente, purifica a alma de todos apetites, apegos e pretensões, de modo a não te inquietares com nada de nada."
    "Se purificares tua alma de estranhos gozos e apetites, entenderás as coisas em espírito. E se nelas negares o apetite, gozarás de sua verdade, nelas entendendo o que é certo." 
    "Quanto mais pura e excelente na  é a alma, tanto mais caridade infundida por Deus possui. E quanto maior caridade nela reside, tanto mais Ele ilumina-a e comunica-lhe os dons do Espírito Santo, porque a caridade é o meio e a causa de tal comunicação." 
    "A enamorada alma é suave, mansa, humildepaciente. A rude alma endurece-se em seu amor-próprio." 
    "A enfermidade de Deus não se cura senão com a presença de Deus. Porque a saúde da alma é o amor de Deus, e faltando-lhe esse amor, falta-lhe a saúde."
    "Deus não obra as virtudes numa alma sem sua cooperação."
    "A perfeição não está nas virtudes que a alma descobre em si, mas naquelas que Nosso Senhor nela vê, pois é uma carta fechada."
    "O Céu é firme e não está sujeito à geração. As almas que são de celestial natureza são firmes, não estão sujeitas a gerar apetites ou qualquer outra coisa, porque a sua maneira se parecem a Deus, que nunca muda."
    "O Demônio fica muito satisfeito quando percebe que uma alma deseja receber revelações ou sente inclinações por elas, visto que neste caso se lhe oferecem muitas ocasiões e possibilidade de insinuar erros e de nelas destruir a fé."
    "Como ao próprio Deus, assim o Demônio teme a alma que está unida a Deus."
    "Os divinos toques, que Deus faz na alma, animam e enchem de brio para padecer. Muito sofre a alma enquanto Deus vai ungindo-a e dispondo-a, a fim de uni-la a Si."
    "A alma que vive na união de amor, nem sequer os primeiros movimentos lhe pertencem."
    "Quando a alma se acha livre e de tudo purificada, em união com Deus, nenhuma coisa poderá aborrecê-la. Daqui se origina para ela, neste estado, o gozo de uma contínua Vida e tranquilidade, que ela nunca perde nem jamais lhe falta."
    "A pessoa que está presa por algum afeto a alguma coisa, mesmo pequena, não alcançará a união com Deus, mesmo que tenha muitas virtudes. Pouco importa se o passarinho está amarrado com um grosso ou fino fio... sempre ficará preso e não poderá voar."
    "Não faça coisa alguma nem diga palavra alguma que Cristo não faria ou não diria, se encontrasse as mesmas circunstâncias."
    "Tem fortaleza no coração contra tudo aquilo que te mover ao que não é Deus, e sê amigo da Paixão de Cristo."
    "Com Cristo padecer Seu Cálice, é a mais preciosa coisa..."
    "Se queres chegar à posse de Cristo, jamais O procures sem a Cruz."
    "... aproxima-te de Cristo, com mansidão e humildade, segue-O até o Calvário e ao sepulcro."
    "O que é que sabe, quem não sabe sofrer por Cristo?"
    "Queira torna-te, no padecer, algo semelhante a Este Nosso Grande Deus, humilhado e crucificado, pois esta vida só tem razão de ser se for para O imitar."
    "Deus mais estima em ti que te inclines à aridez e a padecer por amor a Ele, que todas consolações, visões espirituais e meditações que possas ter."
    "O amor não consiste em sentir grandes coisas, mas viver com grande simplicidade e sofrer pelo Amado."
    "Quanto maior a afeição, maior a identidade e semelhança, porque é próprio do amor tornar aquele que ama semelhante ao Amado."
    "Ao entardecer, examiná-te-ão no amor. Aprende a amar como Deus quer ser amado, e não olhes tua condição."
    "Onde não há amor, coloca amor e encontrarás amor."
    "Somente vão tendo Sabedoria de Deus aqueles que, como ignorantes crianças, caminham com amor em Seu serviço."
    "Deus nunca dá Sabedoria mística sem amor, pois é o próprio amor que a infunde."
    "A contemplação, mediante a qual o intelecto tem a mais alta noção de Deus, recebe o nome de teologia mística, vale dizer, secreta Sabedoria de Deus, porque também é incompreensível para a faculdade que a recebe."
    "Mais que quantas obras possas fazer, de ti Deus prefere a pureza de consciência, ainda que no menor grau."
    "Não penses que muito trabalhar mais agrada a Deus que o fazer com boa vontade, sem apegos e humanos respeitos."
    "Não julgues que, por não luzirem no outro as virtudes que tu pensas, não será ele precioso aos olhos de Deus pelo que tu não pensas."
    "Abandona tudo que ainda te falta, e volta-te para a única coisa que consigo tudo traz: a santa solidão, acompanhada da oração e da santa e divina leitura, e aí persevera no esquecimento de todas coisas..."
    "Na tribulação, imediatamente recorre a Deus com toda confiança e serás fortalecido, iluminado e ensinado. Na consolação e na alegria, imediatamente recorre a Deus com temor e verdade, e não serás enganado nem envolvido pela vaidade."
    "Alegra-te por nem tu nem os outros te conhecerem."
    "Procura não te entristeceres tão depressa com as contrariedades do mundo, pois não sabes o bem que consigo trazem, nem como estão ordenadas nos juízos de Deus para a sempiterna alegria dos eleitos."
    "O homem não sabe bem alegrar-se nem bem condoer-se, porque desconhece a distância entre o bem e o mal."
    "Que felicidade o homem poder libertar-se de sua sensualidade! Isto não pode ser bem compreendido, a meu ver, senão por quem o experimentou. Só então se verá claramente como era miserável a escravidão em que se estava."
    "Duplo trabalho tem o pássaro que pousou no visco: soltar-se e limpar-se. Também de duas maneiras pena quem satisfaz seu apetite: em primeiro lugar, dele libertar-se, e, depois, limpar-se do que se lhe apegou."
    "Por causa de passageiros prazeres, sofrem-se grandes e eternos tormentos."
    "Quem age com tibieza, está perto da queda."
    "Quem se queixa ou murmura, não é perfeito nem sequer bom cristão."
    "Quem foge da oração, de todo bem foge."
    "Quem não ama seu próximo, aborrece a Deus."
    "Manso é quem sabe suportar o próximo e a si mesmo."
    "Ter mais olhos para os bens de Deus que para o próprio Deus, é um grande erro."
    "Os velhos amigos de Deus dificilmente pecam contra Deus, porque estão acima de tudo quanto os possa levar a pecar."
    "O que Deus pretende é fazer-nos deuses por participação, sendo-o Ele por natureza, como o fogo que em fogo tudo converte."
    "Olha que teu Anjo da Guarda nem sempre move o apetite a agir, se bem que sempre ilumine a razão. Portanto, não estejas à espera do gosto para praticar a virtude, pois basta a razão e o entendimento. Quando o apetite está posto noutra coisa, não dá lugar para que o Anjo o mova."
    "Quem poderá livrar-se destes modos e baixos termos, se não sois Vós, Meu Deus, a erguê-lo para Vós em pureza de amor? Como se elevará até Vós o homem gerado e criado em baixezas, se não sois Vós, Senhor, a deitar-lhe a mão com que o fizestes?"
    "Senhor, quero padecer e ser desprezado por amar a Vós."
    "Eu não Vos conhecia, Meu Senhor, porque ainda desejava conhecer e saborear coisas."

    No dia 7 de dezembro soube por revelação que morreria no dia 14, e a todos avisou que nesse dia iria cantar as matinas no Céu. De fato, à meia-noite do dia 13, expirou dizendo as últimas palavras de Jesus, no Evangelho Segundo São Lucas: "Senhor, em Tuas mãos Eu entrego Meu espírito (cf. Lc 23,46)." Alguém saiu correndo e gritando pelas ruas da cidade que o Santo do Carmo havia morrido, e, apesar da hora e da tempestade que caia, a população acorreu ao convento para o velar, forçando as portas até que abrissem.
    É o Padroeiro dos poetas de língua espanhola.
    Parte de suas relíquias, que por muitos anos se mantiveram incorruptas, foram levadas a Segóvia, e são veneradas num convento que tem seu nome.


    Mas outra parte ficou mesmo em Úbeda, onde foi sepultado e fizeram um belo oratório em sua homenagem.


    São João da Cruz, rogai por nós!