quinta-feira, 7 de novembro de 2024

As Imagens


    Assim como precisamos de metáforas e símbolos para comunicar valores que são difíceis de exprimir, também usamos das imagens para representar o que vemos ou imaginamos. Desta forma, as imagens de anjos, de Jesus, de Maria e dos mais antigos Santos são 'retratos falados', que a Tradição da Igreja guardou, ou descrições de visões. E seja como símbolo ou representação da própria realidade, não é difícil imaginar a importância que através dos tempos tem a imagem do Cristo na Cruz, por exemplo, tanto para pessoas iletradas como letradas.
    Convenhamos, Jesus bem sabia que Seu rosto seria desenhado, pintado e esculpido. Era simplesmente humano que isso acontecesse, e Ele nunca o proibiu. Ao contrário, até assegurou que Sua imagem era a imagem do próprio Pai, como veremos.
    Que mal haveria nelas, afinal? Imagens de Jesus ou de Santos nunca foram usadas para usurpar o lugar de Deus, como fizeram os israelitas com o bezerro de ouro. Elas são o que são: imagens. A palavra 'ídolo', em grego, quer dizer 'falso deus'. Idolatria, portanto, é adorar um falso deus. Na Igreja, além de não as adorar, não temos imagens de falsos deuses, mas de Jesus, verdadeiro Deus, e de Santos verdadeiramente Santos, e como meras imagens elas são tratadas, mesmo quando as veneramos.
    É fato que nos primórdios Deus proibiu o uso de imagens, mas assim fez claramente para vedar qualquer culto a outros deuses que não a Ele mesmo, como acontecia na época do politeísmo e do paganismo. Ou seja, Ele não quer que nada ocupe Seu lugar. A condição de Deus é só e exclusivamente d'Ele, e por isso determinou aos israelitas através de Moisés, que registrou no Livro do Êxodo: "Não terás outros deuses diante de Minha face. Não farás para ti escultura, nem figura alguma do que está em cima, nos Céus, ou embaixo, sobre a Terra, ou nas águas, debaixo da terra. Não te prostrarás diante delas e não lhes prestarás culto." Êx 20,3-5a
    Esse mesmo preceito de exclusividade está expresso no Livro do Deuteronômio, nesses termos, logo depois que Moisés anunciou os Dez Mandamentos ao povo de Israel: "Ouve, ó Israel! O Senhor, Nosso Deus, é o único Senhor. Amarás o Senhor, Teu Deus, com todo teu coração, com toda tua alma e com todas tuas forças." Dt 6,4-5
    Uma imagem, portanto, só representa um mal quando é tratada como o próprio Deus, posta em Seu lugar. Se a imagem representasse um mal em si mesma, Ele não teria ordenado a confecção de querubins para a Arca da Aliança, onde eram guardadas as Tábuas da Lei, como vemos ainda no Livro do Êxodo: "Farás dois querubins de ouro. E fa-los-ás de ouro batido, nas duas extremidades da tampa, um de um lado e outro de outro, fixando-os de modo a formar uma só peça com as extremidades da tampa. Terão esses querubins suas asas estendidas para o alto, e protegerão com elas a tampa, sobre a qual terão a face inclinada." Êx 25,18-20
    No Livro de Números, Ele também mandou fazer a serpente de bronze, para curar as pessoas do acampamento enquanto cruzavam o deserto: "E o Senhor disse a Moisés: 'Faze para ti uma ardente serpente e mete-a sobre um poste. Todo aquele que for mordido, olhando para ela, será salvo.' Moisés fez, pois, uma serpente de bronze, e fixou-a sobre um poste. Se alguém era mordido por uma serpente e olhava para a serpente de bronze, conservava a vida." Nm 21,8-9
    Jesus, no Evangelho segundo São João, até vai invocar essa imagem como prefigura de Sua Crucificação. E foi logo em Sua primeira Páscoa na Cidade Santa em vida pública, dizendo a  Nicodemos, um chefe e notável dos fariseus: "Como Moisés levantou a serpente no deserto, assim deve ser levantado o Filho do Homem, para que todo homem que n'Ele crer tenha a Vida Eterna." Jo 3,14-15
    Por isso, ao construir o Templo de Jerusalém, Salomão permitiu-se incluir imagens, o que jamais foi contestado, seja pelos religiosos, seja por Deus mesmo, como lemos no Primeiro Livro de Reis: "Fez no Santuário dois querubins de pau de oliveira, que tinham dez côvados de altura. Cada uma das asas dos querubins tinha cinco côvados, o que fazia dez côvados da extremidade de uma asa à extremidade da outra. O segundo querubim também tinha dez côvados; os dois tinham a mesma forma e as mesmas dimensões. Um e outro tinham dez côvados de altura. Salomão pô-los no fundo do Templo, no santuário. Tinham as asas estendidas, de sorte que uma asa do primeiro tocava uma das paredes e uma asa do segundo tocava a outra parede, enquanto as outras duas asas se encontravam no meio do Santuário. Também revestiu de ouro os querubins. Nos painéis enquadrados de molduras, havia leões, bois e querubins, assim como nas travessas. Por cima e por baixo dos leões e dos bois pendiam grinaldas, em forma de festões." 1 Rs 6,23-28;7,29
    A Carta de São Paulo aos Colossenses, por sua vez, denuncia as coisas que realmente são colocadas no lugar de Deus, deixando claro o que de fato é a idolatria, essa corrupção encravada na alma e que é larga e abertamente cultuada pelo mundo afora. E como definitiva solução, ele recomenda penitências: "Mortificai vossos membros, pois, no que têm de terreno: a devassidão, a impureza, as paixões, os maus desejos, a cobiça, que é idolatria." Cl 3,5
    Lembrando os castigos sofridos pelo povo de Deus no deserto, o Apóstolo dos Gentios vê idolatria essencialmente na ambição e na busca de mundanos prazeres, frívolas ilusões a que se entregam até mesmo muitos que se dizem religiosos. Está na Primeira Carta de São Paulo aos Coríntios: "Estas coisas aconteceram para servir-nos de exemplo, a fim de não cobiçarmos más coisas, como eles as cobiçaram. Não vos torneis idólatras como alguns deles, conforme está escrito: 'O povo sentou-se para comer e para beber, e depois se levantou para divertir-se (Ex 32,6).' Nem nos entreguemos à fornicação, como alguns deles se entregaram... " 1 Cor 10,6-8a
    E na Primeira Carta de São Paulo a São Timóteo, acenando para a maior das idolatria, ele vai ser ainda mais claro: "Porque a raiz de todos males é o amor ao dinheiro. Acossados pela cobiça, alguns desviaram-se da e enredaram-se em muitas aflições." 1 Tm 6,10



    Quanto às imagens de Jesus, especificamente, devemos ter presente que Ele é a plena manifestação de Deus, Revelação que vai muito além das palavras que a descrevem. Afirmativamente, Ele é o próprio Deus em Pessoa, dando-Se a conhecer à humanidade, e não apenas uma representação de Deus Pai. Temos, assim, baseado em relatos das pessoas que O viram, a real e fidedigna imagem de Deus, e não de ‘outros deuses’ como proíbe o Mandamento. Nosso Senhor mesmo disse a São Filipe Apóstolo, em últimos diálogos após a Santa Ceia: "Há tanto tempo que estou convosco e não Me conheceste, Filipe! Aquele que Me viu, também viu o Pai. Como, pois, dizes: 'Mostra-nos o Pai?'..." Jo 14,9
    Falando sobre Sua divina condição, a Carta de São Paulo aos Romanos foi ainda mais direta: "... Jesus é o Senhor..." Rm 10,9
    Para aqueles que realmente creem em Jesus, portanto, Deus revelou-Se à humanidade, o véu já foi retirado. Na Carta aos Hebreus, os seguidores da tradição de São Paulo justificam: "Por esse motivo, irmãos, temos ampla confiança de poder entrar no Eterno Santuário, em virtude do Sangue de Jesus, pelo novo e vivo caminho que nos abriu através do véu, isto é, o caminho de Seu próprio Corpo." Hb 10,19-20
    O Evangelho segundo São Mateus até registrou-o, no momento de Sua Morte na Cruz: "Jesus de novo lançou um grande brado, e entregou a alma. E eis que o véu do Templo se rasgou em duas partes, de alto a baixo, a terra tremeu, fenderam-se as rochas." Mt 2,50-51
    Conforme a Segunda Carta de São Paulo aos Coríntios, aliás, é por isso que os judeus, ainda apegados à Antiga Aliança, que era transitória, não percebem Cristo: "Ainda agora, quando leem o Antigo Testamento, esse mesmo véu permanece abaixado, porque é só em Cristo que ele deve ser levantado. Por isso, até o dia de hoje, quando leem Moisés, um, véu cobre-lhes o coração. Esse véu só será tirado quando se converterem ao Senhor." 2 Cor 3,14b-16
    E é Palavra Sua publicamente em Jerusalém diante dos judeus, que já faziam planos para matá-Lo: "Quando tiverdes levantado o Filho do Homem, então conhecereis Quem EU SOU..." Jo 8,28a
    O Apóstolo dos Gentios diz com todas letras: "Pois n'Ele (Jesus) corporalmente habita toda plenitude da divindade." Cl 2,9
     Sem dúvida, Cristo é Deus revelado e modelo nosso, no qual todos cristãos devemos tornar-nos. E é sempre bom que lembremos: nós fomos feitos à imagem de Deus! E através da prática da obediência a Ele, como este Apóstolo argumenta, cada vez mais recuperaremos Sua semelhança, perdida por causa do pecado: "Mas todos nós temos o rosto descoberto, refletimos como num espelho a Glória do Senhor e vemos-nos transformados nesta mesma imagem, sempre mais resplandecentes, pela ação do Espírito do Senhor." 2 Cor 3,18
    Igualmente exorta os da cidade de Colossos: "Vós despiste-vos do velho homem com seus vícios, e revestiste-vos do novo, que constantemente vai restaurando-se à imagem d'Aquele que o criou, até atingir o perfeito conhecimento." Cl 3,9-10
    Já a Primeira Carta de São João falou da conclusão deste processo: "Caríssimos, desde agora somos filhos de Deus, mas não se manifestou ainda o que havemos de ser. Sabemos que, quando isto se manifestar, seremos semelhantes a Deus, porquanto O veremos como Ele é." 1 Jo 3,2
    Assim a imagem do Cristo serve de inspiração e comunica o inefável, o que as palavras não conseguem expressar. Não é apenas um modelo visual, mas o modelo de vida para os filhos de Deus, como o Último Apóstolo escreveu à igreja de Roma: "Aqueles que Ele de antemão distinguiu, também os predestinou para serem conformes à imagem de Seu Filho, a fim de que Este seja o Primogênito entre uma multidão de irmãos." Rm 8,29
    E mais uma vez, perante os coríntios, ele insiste no fato de que, através da Glória de Cristo, já nos foi dada a perfeita imagem de Deus Pai: "... para os incrédulos, cujas inteligências o deus deste mundo obcecou a tal ponto que não percebem a Luz do Evangelho, onde resplandece a Glória de Cristo, que é a imagem de Deus." 2 Cor 4,4
    Ele expressamente diz: "Ele (Cristo) é a imagem de Deus invisível, o Primogênito de toda Criação." Cl 1,15
    É o que também dizem seus discípulos: "Esplendor da Glória de Deus e imagem do Seu Ser, Ele (Cristo) sustenta o universo com o poder de Sua Palavra. Depois de ter realizado a purificação dos pecados, está sentado à direita da Majestade, no mais alto dos Céus..." Hb 1,3
    Por isso, a Carta de São Paulo aos Gálatas cobra uma consciência digna da Pessoa de Jesus, Deus Encarnado, pois eles até já haviam visto uma imagem que ele usava em missão: "Ó insensatos gálatas! Quem vos fascinou, ante cujos olhos foi apresentada a imagem de Jesus Cristo crucificado?" Gl 3,1
    Ora, nem mesmo o rosto dos anjos era um mistério a esse tempo, como se atestou quando Santo Estevão foi apresentado como um blasfemo perante o Sinédrio. O Livro dos Atos dos Apóstolos narrou: "Nele fixando os olhos, todos membros do Grande Conselho viram seu rosto semelhante ao de um anjo." At 6,15


    Não por acaso, o próprio São Lucas pintou a primeira imagem de Nossa Senhora, intitulada de Nossa Senhora do Perpétuo Socorro, cuja antiquíssima cópia vemos acima.
    Em crítica àqueles que seguiam exigindo a circuncisão, pois, São Paulo disse algo muito sério aos que fazem rasa leitura do Antigo Testamento: "Já estais separados de Cristo, vós que procurais a justificação pela Lei. Decaístes da Graça. Quanto a nós, é espiritualmente, da fé, que aguardamos a esperada justiça." Gl 5,4-5
    Ele lembra que já vivemos o Ministério do Espírito Santo: "Depois de terdes começado pelo Espírito, quereis agora acabar pela carne?" Gl 3,3b
    Enfim, arremata: "Se, porém, vos deixais guiar pelo Espírito, não estais sob a Lei." Gl 5,18
    E dá essa explicação à igreja de Corinto: "Nossa capacidade vem de Deus. Ele é que nos fez aptos para ser Ministros da Nova Aliança, não a da letra, e sim a do Espírito. Porque a letra mata, mas o Espírito vivifica. Ora, se o ministério da morte, gravado com letras em pedras, se revestiu de tal Glória que os filhos de Israel não podiam fitar os olhos no rosto de Moisés, por causa do resplendor de sua face (embora transitório), quanto mais glorioso não será o Ministério do Espírito?" 2 Cor 3,5b-8
    Seus seguidores também exortam ao culto ao Deus Vivo, em detrimento do antigo culto judeu. Se tínhamos imagens baseadas em um modelo, hoje prestamos culto ao próprio Deus em Pessoa, que esteve entre nós: Jesus. Se cultuávamos apenas sombras, hoje temos mais que sombras, mais que imagens, temos a própria Luz: "O culto que estes celebram é, aliás, apenas a imagem, sombra das celestiais realidades, como foi revelado a Moisés quando estava para construir o tabernáculo: 'Olha, foi-lhe dito, faze todas coisas conforme o modelo que te foi mostrado no monte (Êx 25,40).'" Hb 8,5
    Para eles, e perceberam bem, o Antigo Testamento foi apenas uma imagem do que Jesus representaria: "A Lei, por ser apenas a sombra dos futuros bens, não sua expressão real, é de todo impotente para aperfeiçoar aqueles que assistem aos sacrifícios que indefinidamente se renovam cada ano." Hb 10,1
    Ora, o próprio Templo de Jerusalém era uma representação dos Céus"Se os meros símbolos das celestes realidades exigiam uma tal purificação, necessário tornava-se que as próprias celestiais realidades fossem purificadas por ainda superiores sacrifícios. Eis porque Cristo entrou, não em santuário feito por mãos de homens, que fosse apenas figura do Verdadeiro Santuário, mas no próprio Céu, para agora a nosso favor apresentar-Se ante a face de Deus." Hb 9,23-24
    Aliás, o Templo era a representação do Corpo Místico de Cristo, que desde o Pentecostes é a própria Igreja. Quando os líderes religiosos de Jerusalém Lhe perguntaram com que autoridade Ele expulsava os vendilhões do Templo... "Respondeu-lhes Jesus: 'Destruí vós este Templo, e em três dias Eu reerguê-lo-ei.' Os judeus replicaram: 'Em quarenta e seis anos foi edificado este Templo, e Tu hás de levantá-lo em três dias?!' Mas Ele falava do Templo de Seu Corpo." Jo 2,19-21


    São João Damasceno, que viveu entre 675 e 749, escreveu belíssimas reflexões sobre esse tema.

    "A todos saciai com Vossa Glória!"