domingo, 11 de agosto de 2024

Santa Clara


    Quando a intensificação do comércio começava a enriquecer a Europa, aos 17 anos Santa Clara conheceu São Francisco, que já tinha 29, e também foi tomada pelo carisma de abraçar a santa pobreza. Seus pais eram bem mais ricos que os dele, e como mulher foi muito mais difícil sair de casa contra a vontade do pai. Após completar 18 anos, porém, no Domingo de Ramos de 1212, ela fugiu na calada da noite para um lugar combinado com São Francisco e outros frades.
    Em seguida, foram à Porciúncula, uma pequena igreja fora da cidade de Assis, uma obra de eremitas cristãos do século IV, vindos da Palestina, que foi adotada por São Bento e seus monges em 576, e agora estava sendo assumida pelos franciscanos. Lá, o Poverello (que quer dizer 'pobrezinho', apelido de São Francisco) cortou-lhe os belos cabelos e deu-lhe um manto de linho cru, em sinal de consagração a Deus e de compromisso com a pobreza.
    Já desde pequena era muito caridosa com os mais pobres e nunca havia entendido a separação entre os que tudo têm, como era sua família, e o povo que nada tinha e ainda vivia trabalhando para dar mais aos abastados.
    Seu pai bem suspeitou para onde ela havia fugido. Acompanhado de seus guardas, foram até à Porciúncula na certeza de que aquela 'pueril menina' tinha sido enfeitiçada pelo 'maluco' de Assis e sua trupe de 'irresponsáveis'.



    Porém não a encontrou aí. Ao saber que São Francisco e seus seguidores se tinham dirigido ao Mosteiro de São Paulo das Abadessas, da ordem das beneditinas, pôs-se rapidamente a caminho, mas quando lá chegou e viu sua filha de cabelos curtos, vestida com o hábito, teve um choque paralisante. São Francisco, tanto para confortá-lo como para demovê-lo da intenção de levá-la de volta, apresentou-a como esposa de Cristo.
    Dias mais tarde, ela foi conduzida para o Convento de Panzo, também das beneditinas. Dezesseis dias depois da fuga de casa, sua irmã mais nova, Inês, que também foi canonizada, iria juntar-se a ela, assim como, passados alguns anos, sua irmã Beatriz, e ainda sua mãe Ortolana, após enviuvar.
    A pedido de Santa Clara, o Poverello criou uma nova regra para ela e outras seguidoras que pretendiam viver a verdadeira e completa pobreza, exatamente ao modo dos 'frades menores', como ele quis que seus seguidores fossem chamados. Para tanto, levou-as às cercanias de Assis, a uma casa junto à igreja de São Damião, onde a imagem do Cristo Crucificado lhe havia falado. Depois lhes trouxe a regra que seria o carisma das 'Pobres Senhoras', mais tarde chamadas de 'Clarissas', em homenagem a Santa Clara, ou ainda a Ordem Segunda de São Francisco.


    Dessa casa Santa Clara não mais sairá. Vai praticar tão rigorosas penitências que São Francisco vai obrigá-la a comer ao menos um pão por dia, nos três que ficava de jejum toda semana. Vivia para adorar o Santíssimo Sacramento, para a oração e para tratar de enfermos. Abstinha-se totalmente de carne, dormia sobre ramos de videira e usava um feixe de lenha como travesseiro.
    São Francisco afastava-se cada vez mais delas, por causa do carinho que lhe devotavam. Achava que não merecia e que as tirava da oração. Depois de muitos apelos, ele aceitou ir lá e fazer-lhes uma pregação. Entrou na igreja de São Damião, rezou bastante em voz baixa, olhando ora para o altar ora para cima, e depois lhes pediu cinzas. Com elas fez um círculo à sua volta, como para não contaminar o ambiente retendo para si suas concupiscências, pôs o resto sobre a cabeça e recitou o Salmo 50, da penitência. Demonstrando assim, emblematicamente, sua luta contra o Mal, apresentava-se como um grande pecador.
    Em 1224 ele seria acometido dos estigmas de Cristo, que o fariam ainda mais recolher-se para evitar a veneração e a curiosidade popular. Em 1225, mesmo ano em que as monjas de Santo Apolinário adotaram a regra das Clarissas, gravemente doente, mas sem querer renegar o dom da vida, com toda humildade ele vai à casa de Santa Clara e pede para ser tratado como um simples enfermo. Depois de uma ligeira melhora, porém, novamente partiu. Seria o último encontro desses formidáveis filhos de Deus. Em 1226, morre São Francisco.
    Santa Clara trocou intensa correspondência com o Papa, porque não queria aceitar a propriedade que ele tentava doar a ela ou à sua irmã, Santa Inês de Assis, para uso da congregação que formavam. Também escreveu a definitiva Regra das Clarissas, acrescentando alguns detalhes à deixada por São Francisco. Falava estritamente o necessário, para não dar ocasião aos pecados que se manifestam nas palavras. Ao chegar à sua presença, todos sentiam que estavam diante de uma Santa. E com razão, pois ao bastar-se com as pequenas esmolas que lhe doava o povo, elas multiplicavam-se em suas mãos a ponto das demais irmãs não suportarem o peso quando lhes repassava. E tal fartura era quase toda doada aos mais pobres ou usada para alimentar o enfermos. Curava as enfermidades das irmãs simplesmente fazendo o sinal da Cruz sobre elas.
     Em 1244, quando Frederico II, Sacro-Imperador Romano-Germânico, invadiu a Itália, enviou os muçulmanos para tomar a região de Assis. Eles escolheram começar por São Damião, mas ao tentarem invadir a igreja viram dela sair Santa Clara portando o Ostensório com a Hóstia Consagrada. E ela rezou: "Senhor, não entregueis às feras as almas daquelas que Vos servem, e guardai Vossas servas que resgatastes com Vosso precioso Sangue." Eles foram tomados de inexplicável pânico, os cavalos andavam para trás assustados, e terminaram fugindo da região sem sequer tentar invadir a cidade de Assis.
    Num Natal, quando esteve muito enferma, não pôde ir assistir à Missa do Galo na igreja de São Francisco, mas pediu as irmãs que não se detivessem por sua causa: ficaria muito bem sozinha. Mais tarde, quando as irmã voltaram para contar-lhe como havia sido bela a Santa Missa, viram seu rosto inexplicavelmente alegre e radiante. E ela disse-lhes: "Louvai o Senhor, irmãs caríssimas, porque não quis deixar-me só neste lugar. Enquanto vós rezáveis, eu, por Graça de Nosso Senhor Jesus Cristo e por intercessão de meu pai São Francisco, estive presente em sua igreja e participei de toda celebração, inclusive recebi a Santíssima Comunhão."
    Por esse milagre de teletransportação, em 1958 o Papa Pio XII fez dela a padroeira da televisão.
    Ela pregava:

    "Nós tornamo-nos o que amamos, e quem amamos molda o que nos tornamos. Se amamos as coisas, tornamo-nos uma coisa. Se nada amamos, tornamo-nos nada."
    "Põe tua mente diante do espelho da eternidade! Põe tua alma no brilho da Glória! E transforma todo teu ser na imagem da própria divindade através da contemplação."
    "A imitação não é uma literal imitação de Cristo, mas significa tornar-se a imagem do Amado, uma imagem revelada através da transformação. Isso significa que devemos tornar-nos vasos do compassivo amor de Deus pelos outros."
    "O Filho de Deus tornou-Se nossa via. E esta, com a palavra e o exemplo, foi-nos indicada e ensinada pelo beato pai nosso Francisco."
    "Ama a Deus, serve a Deus. Tudo está nisso."

    "O silêncio é a linguagem de quem ama. É melhor que a palavra humana renuncie e exprima-se com afeto. Somente a alma, em sua silenciosa linguagem, consegue fazer o que sentimos."
    "O amor que não conhece o sofrimento não é digno desse nome."
    "Por amor a Cristo, não há dor que me faça sofrer."
    "Jesus é a Ponte entre Aquele que tudo pode e as criaturas que de tudo precisam. Sê tu também uma ponte que liga os que tem de sobra, com aqueles que de tanta coisa sentem falta."
    "Se olhares para Deus, o que tanto te preocupa vai parecer insignificante."

    "Nosso trabalho aqui é breve, mas a recompensa é eterna. Não seja perturbado pelo clamor do mundo, que passa como uma sombra. Não deixes falsas delícias de um enganoso mundo te iludir."
    "Magnífica de verdade e digna de todo louvor essa troca: refutar os bens da terra para ter aqueles do Céu, merecer o celestial em vez do terreno, aceitar o cem por um e possuir a beata Vida para a eternidade."

    "Beata pobreza! Aos que te amam e te abraçam, dás eternas riquezas."
    "Sai em Paz, pois tu seguiste o bom caminho. Sai sem medo, pois Quem te criou, santificou-te, sempre protegeu-te, e ama-te como uma mãe. Bendito sede Vós, Meu Deus, por ter-me criado."
    "Nosso corpo não é feito de ferro, nossa força não é a da pedra. Vive e espera no Senhor, e permite que teu serviço seja de acordo com a razão."
    "Nunca perca de vista teu ponto de partida."
    "Eu venho, ó Senhor, ao Teu santuário para ver a Vida e a Comida de minha alma. Como espero em Ti, ó Senhor, inspira-me com esta confiança que me leva ao Teu santo monte. Permite-me, Divino Jesus, aproximar-me de Ti, para que toda minha alma possa homenagear a grandeza de Tua majestade; que meu coração, com suas mais ternas afeições, possa reconhecer Teu infinito amor; que minha memória possa residir nos admiráveis mistérios aqui renovados a cada dia, e que o sacrifício de todo meu ser possa acompanhar o Teu."


    Em 1253, já bem enfraquecida, frequentemente era visitada pelo alto clero. Todos queriam conhecer a Santa irmã de São Francisco de Assis e pedir-lhe conselhos. Ela aproveitou para pedir e receber do Papa Inocêncio IV, em duas ocasiões, o Sacramento da absolvição dos pecados. Ele, que ia visitá-la para inspirar-se em sua santidade, comentou: "Quisera Deus que eu necessitasse de tão pouco perdão."
    Viveu os últimos 17 dias sem tomar nenhum alimento, pois sua e devoção só cresciam enquanto chegava a hora de encontrar-se com Deus. Seu cordão e seus cabelos, que foram cortados por São Francisco, junto aos hábitos do Poverello e um sapato por ele usado depois de receber os estigmas, podem ser vistos na basílica que leva seu nome, onde havia sido a igreja de São Jorge. Segundo respeitáveis relatos, seu corpo esteve perfeitamente conservado até o início do século XIX.


    Santa Clara, rogai por nós!