domingo, 19 de maio de 2024

O Pentecostes


    O Pentecostes, na tradição judaica, é a festa que comemora o dia em que Moisés recebeu de Deus as Tábuas da Lei, no Monte Sinai. Também é chamada de Festa das Semanas, porque acontece sete semanas após a data da saída do Egito, e é comemorada no primeiro dia da oitava. São, pois, cinquenta dias, daí o nome grego "Pentecostes", que significa quinquagésimo. E por causa da estação do ano, ainda é chamada pelos judeus de Festa da Colheita, da Sega ou da Primícia dos Frutos.
    Assim como as Tábuas da Lei, portanto, Deus prometeu uma nova e ainda maior Revelação, e que didaticamente se cumpriria também num dia de Pentecostes: a Nova Aliança, anunciada por Jesus e consumada pela Vinda do Espírito Santo. Está no livro do Profeta Jeremias: "'Dias hão de vir,' Oráculo do Senhor, 'em que firmarei Nova Aliança com as casas de Israel e de Judá. Será diferente da que concluí com seus pais, no dia em que pela mão os tomei para tirá-los do Egito, Aliança que violaram embora Eu fosse o Esposo deles. Eis a Aliança, então, que farei com a casa de Israel.' Oráculo do Senhor: 'Incutir-lhe-ei Minha Lei; gravá-la-ei em seu coração. Serei Seu Deus e Israel será Meu povo.'" Jr 31,31-33
    Se, por mais falar-se, mais conhecemos a Deus Pai e a Deus Filho, também devemos uma especial atenção ao Divino Espírito, Cuja Vinda deu novo significado ao Pentecostes. 'Surpresa' guardada por Deus, assim como o próprio Jesus, para a plenitude dos tempos, Ele já aparecia, sempre sutilmente, desde as primeiras linhas das Escrituras: "... o Espírito de Deus pairava sobre as águas." Gn 1,2
    Mas a humanidade caiu em pecado, como sabemos, e assim levou Deus a essa decisão, tomada ainda antes do dilúvio: "Meu Espírito não permanecerá para sempre no ser humano, porque todo ele é carne, e a duração de sua vida será de cento e vinte anos." Gn 6,3
    Entretanto, mesmo que de episódico modo, o Divino Paráclito notoriamente continuava agindo sobre aqueles que eram fiéis aos planos de Deus: "Moisés saiu e referiu ao povo as palavras do Senhor. Reuniu setenta homens dos anciãos do povo e colocou-os em volta da Tenda. O Senhor desceu na nuvem e falou a Moisés. Tomou uma parte do Espírito que o animava e pô-la sobre os setenta anciãos. Apenas repousara o Espírito sobre eles, começaram a profetizar, mas não continuaram." Nm 11,24-25
    Assim também se deu com o rei Saul, enquanto era preparado pelo Profeta Samuel: "À entrada da cidade encontrarás um grupo de Profetas descendo do alto lugar, precedidos de saltérios, de tímpanos, de flautas e de cítaras, profetizando. O Espírito do Senhor também virá sobre ti, profetizarás com eles e tornar-te-ás um outro homem." 1 Sm 10,5b-6
    E falando sobre a teimosia do povo de Israel, Neemias assentiu perante Deus: "Vossa paciência para com eles durou muitos anos. Vós fazíei-lhes admoestações pela inspiração de Vosso Espírito, que animava Vossos Profetas." Ne 9,30a
    Mesmo estrangeiros percebiam Sua ação, como foi o caso do faraó e da nobreza do Egito, referindo-se a São José do Egito, filho de Jacó: "'Poderíamos', disse-lhes ele, 'encontrar um homem que tenha, tanto quanto este, o Espírito de Deus?'" Gn 41,38
    E no livro da Sabedoria, o sagrado autor bem demonstra saber como e a Quem recorrer: "Que homem, pois, pode conhecer os desígnios de Deus, e penetrar nas determinações do Senhor? E quem conhece Vossas intenções, se Vós não lhe dais a Sabedoria, e se do mais alto dos Céus Vós não lhe enviais Vosso Espírito Santo?" Sb 9,13.17
    Até já descrevia Seu agir: "A Sabedoria não entrará na perversa alma, nem habitará no corpo sujeito ao pecado. O Espírito Santo Educador das almas fugirá da perfídia, afastar-Se-á de insensatos pensamentos, e a iniquidade que está por vir repeli-Lo-á." Sb 1,4-5
    Passados alguns séculos, contudo, Deus, através do Profeta Ezequiel, prometeu reunir Seu povo. Era a Unidade da Igreja, que o Espírito Santo iria realizar através da Comunhão: "... Eu dá-lhes-ei um só coração e animá-los-ei com um Novo Espírito. De seu corpo extrairei o coração de pedra para substituí-lo por um coração de carne, a fim de que observem Minhas Leis, guardem e pratiquem Meus Mandamentos, sejam Meu povo e Eu, Seu Deus." Ez 11,19-20
    Assim prometia que, em mais notória revelação, daria Nova Vida aos Seus fieis: "... quando Eu derramar em vós Meu Espírito para fazer-vos voltar à Vida, e quando hei de restabelecer-vos em vossa terra, então sabereis que Eu sou o Senhor..." Ez 36,14
    E que, pela Nova Aliança firmada por Jesus, o Divino Paráclito definitivamente permaneceria entre nós. Deus disse através do Profeta Isaías: "'Mas virá como Redentor a Sião e aos arrependidos filhos de Jacó,' Oráculo do Senhor. 'Eis Minha Aliança com eles', diz o Senhor: 'Meu Espírito, que sobre ti repousa, e Minhas Palavras, que coloquei em tua boca, não deixarão teus lábios nem os de teus filhos, nem os de seus descendentes', diz o Senhor, 'desde agora e para sempre.'" Is 59,20-21
    Com efeito, Jesus vai garantir aos Apóstolos, e assim a Igreja: "E Eu rogarei ao Pai, e Ele dá-vos-á outro Paráclito, para que convosco fique eternamente." Jo 14,16
    Mas, como visto, já era por inspiração do Espírito de Deus que Profetas e homens Santos escreviam o Antigo Testamento. São Pedro afirma: "Esta Salvação tem sido o objeto das investigações e das meditações dos Profetas, que proferiram Oráculos sobre a Graça que vos era destinada. Eles investigaram a época e as circunstâncias indicadas pelo Espírito de Cristo, que neles estava e que profetizava os sofrimentos do mesmo Cristo, e as Glórias que deviam segui-los." 1 Pd 1,10-11
    Também assim foi durante a própria passagem de Jesus entre os Apóstolos, como São Lucas registrou: "... contei toda sequência das ações e dos ensinamentos de Jesus, desde o princípio até o dia em que foi arrebatado ao Céu, depois de ter dado, pelo Espírito Santo, Suas instruções aos Apóstolos que escolhera." At 1,1a-2
    E desta forma tem sido desde então. São Paulo escreve aos efésios: "Lendo-me, podereis entender a noção que me foi concedida do Mistério de Cristo, que em outras gerações não foi manifestado aos homens da maneira como agora tem sido revelado pelo Espírito aos Seus Santos Apóstolos e profetas." Ef 3,4-5
    Alegando o Sacramento da Crisma, portanto, São João Evangelista garante: "Vós, porém, tendes a Unção do Santo e sabeis todas coisas. Que permaneça em vós o que tendes ouvido desde o princípio. Se em vós permanecer o que ouvistes desde o princípio, vós também permanecereis no Filho e no Pai. E não tendes necessidade de que alguém vos ensine. Mas, como Sua Unção vos ensina todas coisas, assim é ela verdadeira e não mentira. Permanecei n'Ele, como ela vos ensinou." 1 Jo 2,20.24.27b


O SALVADOR ANUNCIA O ESPÍRITO DA PROMESSA

    Cumpriram-se, então, os tempos, e veio São João Batista para preparar o povo para a Vinda do Salvador. O Arcanjo São Gabriel, ao anunciar seu nascimento a Zacarias, seu pai, deixou informado Quem moveria este arauto: "... e desde o ventre de sua mãe será cheio do Espírito Santo..." Lc 1,15
    Tal unção deu-se através de Nossa Mãe Celeste, a Esposa do Divino Paráclito: "Naqueles dias, Maria levantou-se e foi às pressas às montanhas, a uma cidade de Judá. Entrou em casa de Zacarias e saudou Isabel. Ora, apenas ouviu Isabel a saudação de Maria, a criança estremeceu em seu seio, e Isabel ficou cheia do Espírito Santo." Lc 1,39-41
    Pois ao receber a Anunciação, Nossa Senhora ouviu de São Gabriel como se daria a Encarnação do Salvador: "O Espírito Santo descerá sobre ti, e a força do Altíssimo envolver-te-á com Sua sombra. Por isso, o Santo Ente que de ti nascer será chamado Filho de Deus." Lc 1,35
    E quando São João Batista batizou Jesus, lá estava o Santo Paráclito completando a primeira manifestação pública da Santíssima Trindade: o Pai falando do Céu, o Filho Encarnado e o Espírito como uma pomba: "Depois que Jesus foi batizado, logo saiu da água. Eis que os Céus se abriram e se viu descer sobre Ele, em forma de pomba, o Espírito de Deus. E do Céu ouviu-se uma voz: 'Eis Meu Amado Filho, em Quem ponho Minha afeição.'" Mt 3,16-17
    Ao iniciar Sua vida pública, pois, na sinagoga Jesus leu uma profecia do livro do Profeta Isaías, que na verdade era o discurso inaugural de Sua Missão, antecipado pelas Escrituras ao povo de Deus havia sete séculos: "O Espírito do Senhor repousa sobre Mim, porque o Senhor Me consagrou pela Unção. Enviou-Me a levar a Boa Nova aos pobres, curar os corações doloridos, anunciar aos cativos a redenção, e aos prisioneiros a liberdade; proclamar o Ano da Graça do Senhor, e um dia de vingança de Nosso Deus; para consolar todos aflitos..." Is 61,1-2
    Porém, pouco antes de Sua Paixão, avisou que nem todas revelações seriam feitas por Ele mesmo, mas que o Divino Paráclito as arremataria: "Muitas coisas ainda tenho a dizer-vos, mas agora não podeis suportá-las. Quando vier o Paráclito, o Espírito da Verdade, ensiná-vos-á toda a Verdade, porque não falará por Si mesmo, mas dirá o que ouvir, e anunciá-vos-á as coisas que virão." Jo 16,12-13
    Com razão, eram pouco mais de três anos que Jesus estava na companhia dos Apóstolos, e eles já tinham esquecido algumas coisas e ainda precisavam entender outras. Mas Ele garantia que tudo seria recordado e todos esclarecimentos seriam feitos pelo Espírito de Deus: "Mas o Paráclito, o Espírito Santo, que o Pai enviará em Meu Nome, ensiná-vos-á todas coisas e recordá-vos-á tudo que vos tenho dito." Jo 14,26
    Até ajudaria os Apóstolos a testemunhá-Lo nos mais difíceis momentos: "Porque não sereis vós que falareis, mas é o Espírito de Vosso Pai que falará em vós." Mt 10,20
    Sua Paixão, aliás, era condição para a Vinda do Divino Espírito: "Entretanto, digo-vos a Verdade: a vós convém que Eu vá! Porque se Eu não for, o Paráclito não virá a vós. Mas se Eu for, enviá-vo-Lo-ei." Jo 16,7
    Todavia, devido aos pecados sem o devido arrependimento, Ele não é derramado sobre todos, mas apenas sobre a Igreja. Jesus disse: "É o Espírito da Verdade, que o mundo não pode receber porque não O vê nem O conhece. Mas vós conhecê-Lo-eis, porque convosco permanecerá e em vós estará." Jo 14,17
    Por isso, a mera leitura da Palavra de Deus sem os auxílios do Santo Espírito, ou seja, a tentativa de compreensão das Escrituras sem a assistência da Igreja, leva tão somente ao erro e à morte. São Paulo diz deste Ministério, exclusivamente dado por Jesus: "Ele é que nos fez aptos para ser Ministros da Nova Aliança, não a da letra, e sim a do Espírito. Porque a letra mata, mas o Espírito vivifica." 2 Cor 3,6
    Por isso, exige a devida reverência aos membros da Igreja: "Por conseguinte, desprezar estes preceitos é desprezar não a um homem, mas a Deus, que nos infundiu Seu Espírito Santo." 1 Ts 4,8
    São Pedro, de fato, com toda sua autoridade vetou qualquer pessoal entendimento das Escrituras. Ou seja, só a interpretação dada pelo próprio Espírito da Verdade, Aquele que inspirou os sagrados livros, deve prevalecer: "Antes de tudo, sabei que nenhuma profecia da Escritura é de pessoal interpretação. Porque jamais uma profecia foi proferida por efeito de humana vontade. Homens inspirados pelo Espírito Santo falaram da parte de Deus." 2 Pd 1,20-21
    E assim a verdadeira Palavra de Deus vem sendo anunciada. Falando sobre os Profetas, o Príncipe dos Apóstolos diz aos cristãos: "Foi-lhes revelado que propunham não para si mesmos, senão para vós, estas revelações que agora vos têm sido anunciadas por aqueles que vos pregaram o Evangelho da parte do Espírito Santo, enviado do Céu. Revelações estas, que os próprios anjos desejam contemplar." 1 Pd 1,12
    Ora, o Espírito Santo é o próprio Deus, e só Ele pode iluminar-nos para a Verdade que liberta. São Paulo diz: "... o Senhor é o Espírito, e onde está o Espírito do Senhor, aí há liberdade." 2 Cor 3,17
    Verdade essa que é o próprio Jesus, o Verbo Encarnado, o Único que nos leva a Deus: "Jesus respondeu-lhe: 'Eu sou o Caminho, a Verdade e a Vida. Ninguém vem ao Pai senão por Mim.'" Jo 14,6
    E é fazendo-nos compreender Sua Palavra, isto é, mediante nossa prévia obediência, que Ele nos liberta: "Portanto, se o Filho vos libertar, sereis verdadeiramente livres." Jo 8,38
    Sem dúvida, Santo Estevão, ao condenar o Sinédrio, diz que aqueles que não acolhem Jesus e Sua Igreja estão em franca oposição ao Espírito de Deus: "Homens de dura cerviz, e de incircuncisos corações e ouvidos! Vós sempre resistis ao Espírito Santo." At 7,51
    Pois só Ele pode revelar propriamente as coisas de Deus, como o Apóstolo do Gentios diz aos coríntios: "Assim também as coisas de Deus: ninguém as conhece, senão o Espírito de Deus. Ora, nós não recebemos o espírito do mundo, mas sim o Espírito que vem de Deus, que nos dá a conhecer as Graças que Deus nos prodigalizou e que pregamos numa linguagem que nos foi ensinada não pela sabedoria humana, mas pelo Espírito, que exprime as coisas espirituais em termos espirituais. Mas o homem natural não aceita as coisas do Espírito de Deus, pois para ele são loucuras. Nem pode compreendê-las, porque é pelo Espírito que devem ponderar." 1 Cor 2,11-14
    É por Ele que todas Graças nos são derramadas, segundo os seguidores de sua tradição: "... o Espírito Santo, Autor da Graça!" Hb 10,29
    É por Ele que se alcança a santidade, cuja finalidade São Pedro diz aos fiéis: "... eleitos segundo a presciência de Deus Pai e santificados pelo Espírito para obedecer a Jesus Cristo..." 1 Pd 2a
    Jesus foi bem explícito ao dizer como o Santo Paráclito cumpriria Sua missão, abrindo-nos os olhos à Verdade: "E, quando Ele vier, convencerá o mundo a respeito do pecado, da justiça e do Juízo." Jo 16,8
    E depois de ressuscitado, em Sua última aparição ao colégio dos Apóstolos Ele disse: "Eu mandá-vos-ei o Prometido de Meu Pai. Entretanto, permanecei em Jerusalém até que sejais revestidos da força do alto." Lc 24,49
    Por isso, falando sobre o Pentecostes que acabara de acontecer, São Pedro assegurou aos peregrinos em Jerusalém: "... Jesus recebeu do Pai o Espírito Prometido e derramou-O, como estais vendo e ouvindo." At 2,33
    O Paráclito, pois, como São Paulo afirma, é a própria garantia da Salvação: "N'Ele (Cristo) também vós, depois de terdes ouvido a Palavra da Verdade, o Evangelho de vossa Salvação no qual tendes crido, fostes selados com o Espírito Santo que fora prometido, que é o penhor de nossa herança, enquanto esperamos a completa redenção daqueles que Deus adquiriu para o louvor da Sua Glória." Ef 1,13-14
    Ele assim explica o Pentecostes aos romanos: "A Lei do Espírito de Vida libertou-me, em Jesus Cristo... O que era impossível à Lei, visto que a carne a tornava impotente, Deus fez. Enviando, por causa do pecado, Seu próprio Filho numa carne semelhante à do pecado, condenou o pecado na carne, a fim de que a justiça prescrita pela Lei fosse realizada em nós que vivemos não segundo a carne, mas segundo o espírito. Vós, porém, não viveis segundo a carne, mas segundo o espírito, se é que o Espírito de Deus realmente habita em vós. Se alguém não possui o Espírito de Cristo, este não é d'Ele. De fato, se viverdes segundo a carne, haveis de morrer; mas, se pelo espírito mortificardes as obras da carne, vivereis, pois todos que são conduzidos pelo Espírito de Deus são filhos de Deus." Rm 8,2a.3-4.9.13-14
    O cumprimento dessa promessa, portanto, marcaria um novo tempo, o tempo do Espírito Santo, o tempo da Igreja, o tempo dos Sacramentos. De fato, em Suas últimas Palavras, ou seja, pouco antes de Sua Ascensão aos Céus, Jesus vai dizer: "... descerá sobre vós o Espírito Santo e dá-vos-á força. E sereis Minhas testemunhas em Jerusalém, em toda Judeia e Samaria, e até os confins do mundo." At 1,8
    Aliás, na Festa das Tendas, conforme São João Evangelista, Ele já havia prometido esse indizível dom: "No último dia, que é o principal dia de Festa, estava Jesus de pé e clamava: 'Se alguém tiver sede, venha a Mim e beba. Quem crê em Mim, como diz a Escritura: De seu interior manarão rios de Água Viva (Zc 14,8; Is 58,11).' Dizia isso referindo-Se ao Espírito que haviam de receber os que n'Ele cressem, pois ainda não fora dado o Espírito, visto que Jesus ainda não tinha sido glorificado." Jo 7,37-39

O NASCIMENTO DA IGREJA

    No livro dos Atos dos Apóstolos, São Lucas deu mais detalhes da última aparição de Jesus aos Onze, antes de iniciar a caminhada final até Betânia, onde ocorreria a Ascensão: "E a eles manifestou-Se vivo depois de Sua Paixão, com muitas provas, aparecendo-lhes durante quarenta dias e falando das coisas do Reino de Deus. E comendo com eles, ordenou-lhes que não se afastassem de Jerusalém, mas que esperassem o cumprimento da promessa de Seu Pai, 'que ouvistes', disse Ele, 'da Minha boca. Porque João batizou na água, mas vós sereis batizados no Espírito Santo daqui a poucos dias.'" At 1,3-5
    Cinquenta dias após a Páscoa da Ressurreição, por fim, chegou o grande momento. A confusão de línguas da Torre de Babel seria desfeita, a Igreja já nasceria católica, quer dizer, universal, falando a todas nações, pois através dela o Espírito de Deus Se manifestou por completo, e em profusão a humanidade voltou a experimentar a natureza divina: "Todos eles unanimemente perseveravam na oração, e com eles as mulheres, entre elas Maria, mãe de Jesus, e os irmãos d'Ele. Quando chegou o dia de Pentecostes, todos eles estavam reunidos no mesmo lugar. De repente, do céu veio um barulho como o sopro de um forte vendaval, e encheu a casa onde eles se encontravam. Apareceram, então, umas como línguas de fogo, que se espalharam e foram pousar sobre cada um deles. Todos ficaram repletos do Espírito Santo, e começaram a falar em outras línguas, conforme o Espírito lhes concedia que falassem." At 1,14;2,1-4


    E como São Pedro iria invocar em pregação aos judeus que ali acorreram, deu-se o cumprimento da profecia de Joel: "Depois disso, derramarei Meu Espírito sobre todos viventes, e vossos filhos e as filhas tornar-se-ão profetas. Entre vós, os velhos terão sonhos e os jovens terão visões! Nesses dias, até sobre escravos e escravas derramarei Meu Espírito!" Jl 3,1-2
    Assim, movida por tão poderosa Graça, a força da Igreja tornava-se irresistível. Muitos religiosos judeus eram tocados: "Grande número de sacerdotes também aderia à ." At 6,7
    E como previsto por Jesus, que disse que o testemunho dos Apóstolos se daria na Judeia, na Samaria e nos confins da terra, veio em seguida o 'Pentecostes dos Samaritanos': "Os Apóstolos que se achavam em Jerusalém, tendo ouvido que a Samaria recebera a Palavra de Deus, enviaram-lhe Pedro e João. Estes, assim que chegaram, fizeram oração pelos novos fiéis, a fim de receberem o Espírito Santo, visto que ainda não havia descido sobre nenhum deles, mas somente tinham sido batizados em Nome do Senhor Jesus. Então os dois Apóstolos impuseram-lhes as mãos e receberam o Espírito Santo." At 8,14-17
    E assim, através dos auxílios do Santo Paráclito, a Igreja estabeleceu-se e cresceu: "A Igreja então gozava de Paz por toda Judeia, Galileia e Samaria. Ela estabelecia-se caminhando no temor do Senhor, e a assistência do Espírito Santo fazia-a crescer em número." At 9,31
    Por fim, sempre sobre a guia do Espírito de Deus e mais uma vez através da pregação de São Pedro, em breve também os não judeus, ou seja, os povos dos 'confins da terra' participariam da Comunhão Espiritual: "Enquanto Pedro refletia sobre a visão, disse-lhe o Espírito: 'Eis aí três homens que te procuram. Levanta-te! Desce e vai com eles sem hesitar, porque sou Eu Quem os enviou.'" At 10,19-20
    Era o "Pentecostes dos Gentios", que se deu na casa de Cornélio: "Ainda estando Pedro a falar, o Espírito Santo desceu sobre todos que ouviam a Santa Palavra. Os fiéis da circuncisão, que tinham vindo com Pedro, profundamente admiraram-se vendo que o dom do Espírito Santo também era derramado sobre os pagãos, pois eles os ouviam falar em outras línguas e glorificar a Deus. Pedro então tomou a palavra: 'Porventura pode-se negar a Água do Batismo a estes que receberam o Espírito Santo como nós?'" At 10,44-47
    Sim, porque a pregação dos Apóstolos não eram só palavras, como São Paulo atesta em carta aos tessalonicenses: "Nosso Evangelho foi-vos pregado não somente por palavra, mas também com poder, com o Espírito Santo e com plena convicção." 1 Ts 1,5
    Ele é a força que auxiliava os Apóstolos a testemunhar a Ressurreição de Jesus, como visto perante o Sinédrio, porque a obediência a Deus é inalienável condição para recebê-Lo: "Pedro e os Apóstolos replicaram: 'Antes importa obedecer a Deus que aos homens. O Deus de nossos pais ressuscitou Jesus, que vós matastes, suspendendo-O num madeiro. Deus elevou-O pela mão direita como Príncipe e Salvador, a fim de dar a Israel o arrependimento e a remissão dos pecados. Deste fato, nós somos testemunhas, nós e o Espírito Santo, que Deus deu a todos aqueles que Lhe obedecem.'" At 5,29-32
    Desde o nascimento da Igreja, portanto, os caminhos são decididos por Ele: "Enquanto celebravam o culto do Senhor, depois de terem jejuado, disse-lhes o Espírito Santo: 'Separai-Me Barnabé e Saulo para a obra a que os tenho destinado.' Então, jejuando e orando, lhes impuseram as mãos e os despediram." At 13,2-3
    Pelo sim e pelo não: "Ao chegarem aos confins da Mísia, tencionavam seguir para a Bitínia, mas o Espírito de Jesus não o permitiu." At 16,7
    Principalmente nos assuntos de alta relevância, como aconteceu no Concílio de Jerusalém. Após o voto de São Pedro, São Tiago Menor vai concluir: "Com efeito, bem pareceu ao Espírito Santo e a nós não vos impor outro peso além do indispensável seguinte..." At 15,28
    Ele é que constitui os diferentes graus dos sacerdócios, como São Paulo disse aos Anciãos de Éfeso: "Cuidai de vós mesmos e de todo rebanho sobre o qual o Espírito Santo vos constituiu bispos, para pastorear a Igreja de Deus, que Ele adquiriu com Seu próprio Sangue." At 20,28
    Ele é Deus de amor manifestando-Se em Sua plenitude: "Porque o amor de Deus foi derramado em nossos corações pelo Espírito Santo que nos foi dado." Rm 5,5
    É Ele que nos concede a Comunhão Espiritual: "A Graça do Senhor Jesus Cristo, o amor de Deus e a Comunhão do Espírito Santo estejam com todos vós!" 2 Cor 13,13
    O Amado Discípulo assegura: "Se mutuamente nos amarmos, Deus permanece em nós e Seu amor é perfeito em nós. Nisto é que conhecemos que estamos n'Ele e Ele em nós, por Ele ter-nos dado Seu Espírito." 1 Jo 4,12b-13
    Essa Comunhão, porém, só é possível através do perdão dos pecados exclusivamente concedido pela Igreja, conforme prescrição de Jesus, que o ministra por ação de Seu Espírito, soprado por Ele mesmo sobre Seus escolhidos para este fim: "Depois dessas palavras, soprou sobre eles dizendo-lhes: 'Recebei o Espírito Santo. Àqueles a quem perdoardes os pecados, sê-lhes-ão perdoados. Àqueles a quem os retiverdes, sê-lhes-ão retidos.'" Jo 20,22-23
    Por isso, ainda no dia do Pentecostes, São Pedro exigia a devida penitência: "Pedro respondeu-lhes: 'Arrependei-vos e cada um de vós seja batizado em Nome de Jesus Cristo para remissão de vossos pecados, e recebereis o dom do Espírito Santo.'" At 2,38
    Dos já convertidos, São Paulo exigia o devido respeito: "Ou não sabeis que vosso corpo é Templo do Espírito Santo, que em vós habita, o Qual recebestes de Deus e que, por isso mesmo, já não vos pertenceis?" 1 Cor 6,19
    Diz que Ele é nossa via de acesso à Igreja: "É n'Ele (Cristo) que vós também entrais, pelo Espírito, na estrutura do edifício que se torna a habitação de Deus." Ef 2,22
    Lembrando a garantia que Ele representa, pedia mais: "Não contristeis o Santo Espírito de Deus, com o Qual estais selados para o Dia da Redenção." Ef 4,30
    Referindo-se aos ensinamentos de Jesus, São João Evangelista afirma que Ele é a marca de todo cristão: "Quem observa Seus Mandamentos permanece em Deus e Deus nele. É nisto que reconhecemos que Ele permanece em nós: pelo Espírito que nos deu." 1 Jo 3,24
    E também menciona a obediência à Igreja: "Quem conhece a Deus, ouve-nos; quem não é de Deus, não nos ouve. É nisto que conhecemos o Espírito da Verdade e o espírito do erro." 1 Jo 4,6b
    É o Paráclito, enfim, que, além da Comunhão Eucarística, distribui os dons de Deus: "Mas um e o mesmo Espírito distribui todos estes dons, repartindo a cada um como Lhe apraz." 1 Cor 12,11
    E todos eles são-nos concedidos especificamente para a construção da Igreja, que é uma só: "Assim, uma vez que aspirais aos dons espirituais, procurai tê-los em abundância para edificação da Igreja." 1 Cor 14,12
    Por isso, como vimos, São Paulo diz: "Se alguém não possui o Espírito de Cristo, este não é d'Ele." Rm 8,9
    Ora, ele avisou que sem os auxílios do Santo Paráclito sequer podemos reconhecer que Jesus é Deus: "... ninguém pode dizer: Jesus é o Senhor, senão sob a ação do Espírito Santo." 1 Cor 12,3
    De fato, como o Profeta Zacarias previu, é Ele que nos faz olhar com outros olhos para o Crucificado: "Derramarei um Espírito de Graça e oração sobre a casa de Davi e sobre os moradores de Jerusalém, e eles olharão para Mim. Quanto Àquele que transpassaram, chorarão por Ele como se chora pelo único filho. Amargamente vão chorá-Lo, como se chora por um primogênito." Zc 12,10
    Esse 'Batismo' do Pentecostes também havia sido previsto por São João Batista, que disse a seus discípulos: "Eu batizo-vos com água, em sinal de penitência, mas Aquele que virá depois de mim é mais poderoso que eu e nem sou digno de carregar Seus calçados. Ele batizar-vos-á no Espírito Santo e em fogo." Mt 3,11
    E as línguas de fogo sobre as cabeças dos membros da Igreja foram mencionadas por Jesus: "Vim trazer fogo à terra, e quanto desejaria que já estivesse aceso!" Lc 12,49
    Fogo esse que inicialmente nos vem por Sua Palavra, com o poder de Seu Espírito, como foi aceso no coração dos discípulos que iam a Emaús no Domingo da Ressurreição: "Não se nos abrasava o coração, quando Ele nos falava pelo caminho e explicava as Escrituras?" Lc 24,32
    São Paulo, pois, zelosamente cuidando da missão da Igreja, trata de exortar-nos: "Não extingais o Espírito." 1 Ts 5,19
    Porque se o ministério de Moisés foi grandioso graças às Tábuas da Lei, ele compara: "... quanto mais glorioso não será o Ministério do Espírito?" 2 Cor 3,14
    Sem o Espírito de Deus, portanto, não temos Vida. E, olhando para o mundo, vemos como nos falta ser insuflada uma verdadeira renovação... Cantemos, pois, com o Salmista: "Todos esses seres esperam de Vós que lhes deis de comer em seu tempo. Vós dai-lhes e eles recolhem-no; abris a mão, e fartam-se de bens. Se desviais o rosto, eles perturbam-se; se retirai-lhes o sopro, expiram e voltam ao pó donde saíram. Se enviais, porém, Vosso Espírito, eles revivem e renovais a face da terra." Sl 103,27-30

    "Vinde, Espírito Santo, enchei os corações de Vossos fiéis e acendei neles o fogo de Vosso amor! Enviai, Senhor, Vosso Espírito, e tudo será recriado. E renovareis a face da terra!"

sábado, 18 de maio de 2024

Comunhão com os Pobres


    As ações de caridade deveriam ser levadas muito mais a sério. Se buscamos a Comunhão com Deus, portanto também com nossos irmãos, devemos compreender o que ela significa e sua real dimensão, porque é evidente a preferência do Pai pelo socorro aos mais pobres. O salmista canta: "Entretanto, Vós vedes tudo: observais os que penam e sofrem para tomar a causa deles em Vossas mãos. É a Vós que se abandona o infortunado, sois Vós o amparo do órfão." Sl 9,35
    Em síntese, a comunhão é a união de comuns, união de iguais. E assim, se buscamos comungar com Deus, estar unidos a Ele, estamos pedindo que Ele partilhe conosco Sua santidade, Sua divindade. Pode parecer absurdo, mas é isso mesmo: a vontade de Deus é oferecer-nos Suas qualidades, que recuperemos Sua semelhança. São Pedro testemunha: "... temos entrado na posse das maiores e mais preciosas promessas, a fim de tornar-vos por este meio participantes da natureza divina..." 2 Pd 1,4
    Os seguidores da tradição de São Paulo disseram o mesmo: "Nossos pais humanos, por pouco tempo, corrigiam-nos como melhor lhes parecia. Deus, porém, corrige-nos para nosso bem, a fim de que sejamos participantes de Sua própria santidade." Hb 12,10
    Essa era a missão dos Apóstolos e continua sendo a da Igreja: através dos Sacramentos, levar as pessoas à Comunhão com a Santíssima Trindade. Diz São João Evangelista: "... o que vimos e ouvimos nós anunciamo-vos, para que vós também tenhais Comunhão conosco. Ora, nossa Comunhão é com o Pai e com Seu Filho Jesus Cristo." 1 Jo 1,3
   Mas ressalta que ao seguir Jesus também entramos em Comunhão entre nós mesmos aqui na Terra, e só assim somos perdoados: "Se, porém, andamos na Luz como Ele mesmo está na Luz, temos Comunhão uns com os outros, e o Sangue de Jesus Cristo, Seu Filho, purifica-nos de todo pecado." 1 Jo 1,7
    Desta forma, se aos pobres negamos atenção também lhes negamos a Comunhão, pois nos colocamos acima deles e não em condição de iguais. E assim não pode haver Comunhão, não há Eucaristia. Isso é gravíssimo! Estamos negando o próprio testemunho da Encarnação de Cristo, e que foi possível Sua entrega de amor, quando Ele pede exatamente o contrário: "Isto é Meu Corpo, que é dado por vós. Fazei isto em memória de Mim." Lc 22,19
    Se Deus veio na Pessoa de Jesus para fazer-Se igual a nós, o que nos impede que nos façamos iguais aos mais necessitados? Por que razão Ele Se tornou humano senão para conosco comungar? Seu exemplo vale para todos, sem exceção. Não só os Santos devem empenhar-se na comunhão do amor. Jesus fez-Se igual a nós, amou-nos e pediu-nos que dedicássemos uns aos outros um amor igual ao que Ele demonstrou: "Como Eu vos tenho amado, também deveis amar-vos uns aos outros." Jo 13,34b
    Essa é Sua mais ardorosa recomendação: "Este é Meu Mandamento: amai-vos uns aos outros, como Eu vos amo." Jo 15,12
    Essa é a verdadeira Comunhão. Negar que somos capazes desse amor é acusar Jesus de propor uma utopia, é negar a Vinda do Salvador. E negar esse amor aos pobres é negá-lo ao próprio Jesus, é condenar-se: "Em Verdade, Eu declaro-vos: todas vezes que deixastes de fazer isso a um destes pequeninos, foi a Mim que o deixastes de fazer." Mt 25,45
    Pela mesma razão, a Salvação será dada àqueles que têm o coração aberto para os que sofrem, em cujas pessoas Jesus nos implora caridade: "... porque tive fome e Me deste de comer; tive sede e Me deste de beber; era peregrino e Me acolheste; nu e Me vestiste; enfermo e Me visitaste; estava na prisão e viestes a Mim." Mt 25,35-36
    Foi esta a confirmação que Ele deu aos seguidores de São João Batista. De tão vacilantes, o Batista mandou-os perguntar ao próprio Jesus se Ele era realmente o Messias. E como resposta Ele usou de um sinal: fez menção às Escrituras, que João muito bem conhecia, deixando claro a quem se dirige a mensagem de esperança dada por Deus: "Ide e contai a João o que ouvistes e o que vistes: os cegos vêem, os coxos andam, os leprosos são limpos, os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e o Evangelho é anunciado aos pobres..." Mt 11,4-5
    O próprio São João Batista havia escolhido uma vida de pobreza: "João usava uma vestimenta de pelos de camelo e um cinto de couro em volta dos rins. Alimentava-se de gafanhotos e mel silvestre." Mt 3,4
    E pregava a radical prática da partilha: "Quem tem duas túnicas dê uma ao que não tem. E quem tem o que comer, faça o mesmo." Lc 3,11
    Não por acaso, no discurso inaugural de Sua Missão, Nosso Redentor havia lido no livro de Isaías exatamente a passagem com a qual responderia aos discípulos de São João Batista. Nela está a especial atenção que Deus quer que tenhamos para com os pobres: "O Espírito do Senhor está sobre Mim, porque Me ungiu. E enviou-Me para anunciar a Boa Nova aos pobres..." Is 61,1
    A Igreja, então na pessoa de São Pedro e dos Apóstolos, seguia fielmente esta diretriz, como vemos no momento em que instruíram São Barnabé e São Paulo, ainda no começo de seu ministério, segundo seu próprio relato: "Tiago, Pedro e João, que são considerados as colunas... Recomendaram-nos apenas que nos lembrássemos dos pobres, o que era precisamente minha intenção." Gl 2,9a.10b
    É de São Paulo, aliás, que temos o melhor exemplo do missionário esforço para sempre estar em comunhão com os mais pobres: "Não é minha penúria que me faz falar. Aprendi a contentar-me com o que tenho. Sei viver na penúria e sei também viver na abundância. Estou acostumado a todas vicissitudes: a ter fartura e a passar fome, a ter abundância e a padecer necessidade." Fl 4,11-12
    Até fez uma lista: "Três vezes naufraguei, uma noite e um dia passei no abismo. Viagens sem conta, exposto a perigos nos rios, perigos de salteadores, perigos da parte de meus concidadãos, perigos da parte dos pagãos, perigos na cidade, perigos no deserto, perigos no mar, perigos entre falsos irmãos! Trabalhos e fadigas, repetidas vigílias, com fome e sede, frequentes jejuns, frio e nudez! Além de outras coisas, minha cotidiana preocupação, a solicitude por todas igrejas!" 2 Cor 11,25b-28
    E, no mesmo sentido, ele vai instruir São Timóteo: "Aqueles que ambicionam tornar-se ricos caem nas armadilhas do Demônio e em muitos insensatos e nocivos desejos, que precipitam os homens no abismo da ruína e da perdição. Exorta os ricos deste mundo a que não sejam orgulhosos nem ponham sua esperança em volúveis riquezas, mas em Deus, que abundantemente nos dá todas coisas para delas fruirmos." 1 Tm 6,9.17
    Sem dúvida, Deus sempre dedicou especial atenção aos mais carentes. Tanto que, através do Profeta Amós, chegou a decretar uma grave sentença contra toda nação de Israel: "Ouvi isto, vós que engolis o pobre e fazeis perecer os humildes da terra, dizendo: 'Quando passará a lua nova, para vendermos nosso trigo, e o sábado, para abrirmos nossos celeiros, diminuindo a medida e aumentando o preço, e falseando a balança para defraudar? Compraremos os infelizes por dinheiro e os pobres por um par de sandálias. Venderemos até o refugo do trigo.' O Senhor jurou por causa da soberba de Jacó: 'Jamais esquecerei algum de seus atos.'" Am 8,4-7
    Pois Moisés determinou como deveria ser a vida entre os israelitas na Terra Santa: "Não deverá haver pobres no meio de ti, porque o Senhor, Teu Deus, certamente te abençoará na Terra que te dá como posse hereditária. Se houver no meio de ti um pobre entre teus irmãos, em uma de tuas cidades, na Terra que te dá o Senhor, Teu Deus, não endurecerás teu coração e não fecharás a mão diante de teu irmão pobre, mas abri-lhe-ás a mão e emprestá-lhe-ás segundo as necessidades de sua indigência." Dt 15,4.7-8
    Como punição por causa da desobediência, porém, Israel veio a padecer a miséria da Palavra de Deus: "'Virão dias', Oráculo do Senhor Javé, 'em que enviarei fome sobre a terra. Não uma fome de pão, nem uma sede de água, mas fome e sede de ouvir a Palavra do Senhor. Andarão errantes de um mar a outro, vaguearão do norte ao Oriente, correrão por toda parte buscando a Palavra do Senhor, e não a encontrarão.'" Am 8,11-12
    Com toda propriedade, portanto, São João Evangelista vai perguntar: "Quem possuir bens deste mundo e vir seu irmão sofrer necessidade, mas fechar-lhe seu coração, como pode estar nele o amor de Deus?" 1 Jo 3,17
    Ainda mais grave é a situação do avarento, que angaria riqueza por vias da injustiça! Na parábola do infiel administrador, Jesus vai aconselhar: "Eu digo-vos: fazei-vos amigos com a injusta riqueza, para que, no dia em que ela vos faltar, eles vos recebam nos eternos tabernáculos." Lc 16,9
    Pois ninguém está oculto aos olhos de Deus, tampouco nossa índole, como os Salmos atestam: "Sim, excelso é o Senhor! Ele vê o humilde e de longe percebe os soberbos." Sl 137,6
    E já deu vários e gritantes exemplos nesse sentido: "Ele levanta do pó o indigente e tira do monturo o pobre, para fazê-lo sentar entre os príncipes, junto aos grandes de Seu povo." Sl 112,7-8
    Por isso, São Tiago Menor denuncia deploráveis imposturas dentro da própria Igreja: "Meus irmãos, em vossa fé em Nosso Glorioso Senhor Jesus Cristo, guardai-vos de toda consideração de pessoas. Suponde que um homem com anel de ouro e ricos trajes entre em vossa reunião, e também entre um pobre de degastados trajes. Se atenderdes ao que está magnificamente trajado e disserdes: 'Senta-te aqui, neste lugar de honra', e disserdes ao pobre: 'Fica ali de pé', ou: 'Senta-te aqui junto ao estrado de meus pés', não é verdade que fazeis distinção entre vós, e que sois juízes de iníquos pensamentos? Mas vós desprezastes o pobre! Não são porventura os ricos os que vos oprimem e arrastam aos tribunais? Não blasfemam eles o belo nome que trazeis?" Tg 2,1-4.6-7
    Por isso, diz: "Haverá Juízo sem Misericórdia para aquele que não usou de Misericórdia. A Misericórdia triunfa sobre o Julgamento. De que aproveitará, irmãos, a alguém dizer que tem fé, se não tiver obras? Acaso essa fé poderá salvá-lo? Se a um irmão ou a uma irmã faltarem roupas e o alimento cotidiano, e algum de vós lhes disser: 'Ide em Paz, aquecei-vos e fartai-vos', mas não lhes der o necessário para o corpo, de que lhes aproveitará? Assim também a fé: se não tiver obras, é morta em si mesma." Tg 2,13-17
    E provoca: "Ouvi, meus caríssimos irmãos: porventura não escolheu Deus os pobres deste mundo para que fossem ricos na e herdeiros do Reino, prometido por Deus aos que O amam?" Tg 2,5
    São Paulo, de fato, dizia que a religiosidade deve andar de mãos dadas com o voto de pobreza, com a total confiança na Divina Providência: "Sem dúvida, grande fonte de proveito é a piedade, porém quando acompanhada de espírito de desprendimento. Porque nada trouxemos ao mundo, tampouco nada poderemos levar. Tendo alimento e vestuário, contentemo-nos com isto." 1 Tm 6,6-8
    Pois Nosso Salvador diz que os religiosos já chegaram aonde e a Quem precisavam chegar, e que deviam repassar todos seus bens aos pobres: "Antes dai em esmola o que possuís, e todas coisas ser-vos-ão limpas." Lc 11,41
    Sem distinguir entre Apóstolos e seguidores, Ele vai determinar: "Assim, pois, qualquer um de vós que não renuncia a tudo que possui não pode ser Meu discípulo." Lc 14,33
    Realmente falava de outra 'Família', de outra 'Vida': "Em Verdade, digo-vos: ninguém há que tenha deixado casa ou irmãos, ou irmãs, ou pai, ou mãe, ou filhos, ou terras por causa de Mim e por causa do Evangelho, que não receba, já neste século, cem vezes mais casas, irmãos, irmãs, mães, filhos e terras, com perseguições e no vindouro século a Vida Eterna." Mc 10,29b-30
    E foi terminativo: "Antes buscai o Reino de Deus e Sua justiça, e todas estas coisas sê-vos-ão dadas por acréscimo. Não temais, pequeno rebanho, porque foi do agrado de Vosso Pai dar-vos o Reino. Vendei o que possuís e dai esmolas. Fazei para vós bolsas que não se gastam, um inesgotável tesouro nos Céus, aonde o ladrão não chega e a traça não o destrói. Pois onde estiver vosso tesouro, ali também estará vosso coração." Lc 12,31-34
    Afirmativamente, Ele orou logo após a primeira missão dos Apóstolos: "Naquele mesma hora, Jesus exultou de alegria no Espírito Santo e disse: 'Pai, Senhor do Céu e da terra, Eu dou-Te graças porque escondeste estas coisas aos sábios e inteligentes e as revelaste aos pequeninos. Sim, Pai, bendigo-Te porque assim foi de Teu agrado." Lc 10,21
    O Eclesiástico já havia dito: "Muitos são altaneiros e ilustres, mas é aos humildes que Ele revela Seus mistérios. Pois grande é o poder do Senhor, mas é pelos humildes que Ele é glorificado." Eclo 3,20b-21
    E mesmo sem pedir total consagração, Tobit ensinou a Tobias, seu filho: "Dá esmola de teus bens, e não te desvies de nenhum pobre, pois, assim fazendo, tampouco Deus Se desviará de ti. Sê misericordioso segundo tuas posses. Se tiveres muito, dá abundantemente; se tiveres pouco, dá desse pouco de bom coração. Assim acumularás uma boa recompensa para o dia da necessidade, porque a esmola livra do pecado e da morte, e preserva a alma de cair nas trevas. Para todos que a praticam, a esmola será um motivo de grande confiança diante do Deus Altíssimo." Tb 4,7-12
    Essa era uma grande obra do primeiro não judeu, junto à sua família, a receber o Espírito Santo: "Este homem claramente enxergou numa visão, pela nona hora do dia, aproximar-se dele um anjo de Deus e chamá-lo: 'Cornélio!' Cornélio fixou nele os olhos e, possuído de temor, perguntou: 'Que há, Senhor?' O anjo replicou: 'Tuas orações e tuas esmolas subiram à presença de Deus como uma oferta de lembrança.'" At 10,3-4
    Assim como da mulher que São Pedro ressuscitou: "Em Jope havia uma discípula chamada Tabita, em grego, Dorcas. Esta era rica em boas obras e esmolas que dava. Aconteceu que adoecera naqueles dias e veio a falecer. Pedro imediatamente levantou-se e foi com eles. Logo que chegou, conduziram-no ao quarto de cima. Cercavam-no todas viúvas, chorando e mostrando-lhe as túnicas e os vestidos que Dorcas lhes fazia enquanto era viva." At 9,36-37a.39
    Santo Agostinho inspiradamente ensina que os pobres são os fiscais de Deus, que aí estão para cobrar-nos os impostos que devemos ao Pai, de tantas e tão grandes dádivas que Ele nos concede. Então ao menos quanto ao que possuímos em excesso ou por injustos meios, diligentemente deveríamos agir como Zaqueu, que prometeu diante de Jesus: "Senhor, vou dar a metade de meus bens aos pobres e, se tiver defraudado alguém, restituirei o quádruplo." Lc 19,8
    Mas sem dúvida ainda mais forte é o exemplo da pobre viúva, observado por Jesus, que voluntariamente vivia a plena e evangélica pobreza: "Em Verdade, digo-vos: esta pobre viúva pôs mais que os outros. Pois todos aqueles lançaram nas ofertas de Deus do que lhes sobra. Esta, porém, de sua indigência deu tudo que lhe restava para o sustento." Lc 21,3-4
    Ora, ao enviar os Apóstolos em primeira missão, Jesus recomendou austera simplicidade: "Não leveis nem ouro, nem prata, nem dinheiro em vossos cintos, nem mochila para a viagem, nem duas túnicas, nem calçados, nem bastão, pois o operário merece seu sustento." Mt 10,9-10
    Porque Ele mesmo assim vivia, como afirmou: "As raposas têm covas e as aves do céu, ninhos, mas o Filho do Homem não tem onde reclinar a cabeça." Lc 9,58
    E a pobreza como estado de espírito, que nos permite estar em Comunhão com os pobres, é uma das virtudes que Ele declarou no Sermão da Montanha: "Bem-aventurados os que têm um coração de pobre, porque deles é o Reino dos Céus!" Mt 5,3
    Essa era a condição recomendada pelo Profeta Sofonias: "Curvai-vos, curvai-vos, gente sem pudor, antes que nasça a sentença e o dia passe como a palha. Antes que caia sobre vós o ardor da ira do Senhor. Antes que caia sobre vós o Dia da indignação do Senhor! Buscai o Senhor, vós todos, humildes da terra, que observais Sua Lei. Buscai a justiça e a humildade! Talvez assim estareis ao abrigo no Dia da cólera do Senhor." Sf 2,1-3
    O Eclesiástico, de fato, anotou: "A oração do humilde penetra as nuvens." Eclo 35,21a
    E o salmista cantava: "Ó vós, humildes, olhai e alegrai-vos! Vós que buscais a Deus, reanime-se vosso coração porque o Senhor ouve os necessitados..." Sl 68,33-34a
    Jesus, enfim, ensinou-nos a vivermos na humildade, sem ambições nem mundanas preocupações, a agradecermos pelo que já recebemos e a confiarmos na Divina Providência: "Portanto, eis que vos digo: não vos preocupeis por vossa vida, pelo que comereis, nem por vosso corpo, pelo que vestireis. A vida não é mais que o alimento e o corpo não é mais que as vestes?" Mt 6,25
    Ensinou que a avareza é um pecado mortal: "E propôs-lhe esta parábola: 'Havia um rico homem cujos campos produziam muito. E ele refletia consigo: 'Que farei? Porque não tenho onde recolher minha colheita.' Então disse ele: 'Farei o seguinte: derrubarei meus celeiros e construirei maiores. Neles recolherei toda minha colheita e meus bens. E direi à minha alma: ó minha alma, tens muitos bens em depósito para muitíssimos anos. Descansa, come, bebe e regala-te!' Deus, porém, disse-lhe: 'Insensato! Ainda nesta noite exigirão de ti tua alma. E as coisas, que ajuntaste, de quem serão?' Assim acontece ao homem que entesoura para si mesmo e não é rico para Deus." Lc 12,16-21
    Denunciou a vaidade, principalmente entre religiosos, o que é um verdadeiro acinte diante da miséria de tantos: "Os escribas e os fariseus sentaram-se na cadeira de Moisés. Fazem todas suas ações para serem vistos pelos homens, por isso trazem largas faixas e longas franjas em seus mantos. Gostam dos primeiros lugares nos banquetes e das primeiras cadeiras nas sinagogas. Gostam de ser saudados nas praças públicas e de ser chamados de rabi pelos homens." Mt 23,2.5-7
    Igualmente apontou a gula, também entre religiosos, que é ainda mais sério pecado num mundo de milhões de famintos: "Guardai-vos dos escribas, que querem andar de compridas roupas e gostam das saudações nas praças públicas, das primeiras cadeiras nas sinagogas e dos primeiros lugares dos banquetes; que devoram as casas das viúvas, fingindo fazer longas orações. Eles receberão mais rigoroso castigo." Lc 20,47
    Mas, da mesma forma, denunciou a vaidade entre os fiéis: "Quando, pois, dás esmola, não toques a trombeta diante de ti como fazem os hipócritas nas sinagogas e nas ruas, para serem louvados pelos homens. Em Verdade, digo-vos: já receberam sua recompensa. Quando deres esmola, que tua mão esquerda não saiba o que fez a direita. Assim tua esmola se fará em segredo, e Teu Pai, que vê o escondido, recompensá-te-á." Mt 6,2-4
    E mandou esta séria mensagem à diocese de Laodiceia, no livro do Apocalipse: "Conheço tuas obras: não és nem frio nem quente. Oxalá fosses frio ou quente! Mas, como és morno, nem frio nem quente, vou vomitar-te. Pois dizes: 'Sou rico, faço bons negócios, de nada necessito!' E não sabes que és infeliz, miserável, pobre, cego e nu. Aconselho-te que de Mim compres ouro provado ao fogo, para ficares rico; alvas roupas para vestir-te, a fim de que não apareça a vergonha de tua nudez; e um colírio para ungir os olhos, de modo que possas ver claro. Eu repreendo e castigo aqueles que amo. Reanima teu zelo, pois, e arrepende-te." Ap 3,15-19
    Ora, não estaria o desprezo pelos pobres precisamente na aversão às penitências, que, aliás, foi o primeiro Sacramento recomendado por Jesus? "Desde então, Jesus começou a pregar: 'Fazei penitência, pois o Reino dos Céus está próximo.'" Mt 4,17
    De fato, muita gente acha-se muito correta diante de Deus, mas sabemos que ainda falta uma coisa e que nos conventos e nas paróquias alguns estão tentando cumprir esse preceito. Foi o próprio Jesus que fez essa proposta a um rico jovem que se julgava justo: "Se queres ser perfeito, vai, vende teus bens, dá-os aos pobres e terás um tesouro no Céu. Depois, vem e segue-Me!" Lc 19,21
    No mínimo, falta a devida compaixão, como Ele pregou no Sermão da Montanha: "Dá a quem te pede e não te desvies daquele que quer pedir-te emprestado." Mt 5,42
    E para nossa mais profunda reflexão, temos uma triste profecia renovada por Jesus, que põe por terra todas nossas pretensões de soluções materialistas, além de alertar para a obrigação de constante busca de Comunhão com os necessitados: "Pois convosco sempre tereis os pobres..." Jo 12,8
    Ela havia sido proferida por Moisés, quando determinou ao povo de Israel esta regra que deve valer em toda Terra Santa: "Nunca faltarão pobres na terra, e por isso dou-te esta ordem: abre tua mão ao teu irmão necessitado ou pobre que vive em tua Terra." Dt 15,11


    "Santificai e reuni Vosso povo!"

Padre Manuel da Nóbrega, Pai do Brasil


    Sua grandeza já se revelava em Portugal, bem antes de vir ao Brasil, mas é na Terra de Santa Cruz que se deu sua história de consagração como homem de Deus. Ela também é a história do nascimento do país. Não é nenhum exagero, pois, dar-lhe o título de Pai do Brasil, tanto pela destacada liderança que com zelo exerceu, e a serviço de todo povo nos primeiríssimos anos da colonização, como pelas cartas que primeiro contam da organização da vida social, sob todos aspectos, nestas terras.
    A pedido do rei de Portugal, chegou à Vila de São Salvador com Tomé de Souza e os primeiros padres jesuítas, para o estabelecimento do Governo Geral em 1549, portanto apenas quinze anos após a divisão da colônia em capitanias hereditárias, que representou o início da ocupação de nosso território.
    Na viagem de 8 semanas, fazia confessarem-se os do navio, e uma vez em terra, logo tratou de rezar a Santa Missa com a presença dos nativos, mas antes buscou obter a Confissão dos homens dos outros navios. Irá demonstrar grande amor aos índios, porém os desafios entre eles seriam enormes, dados os entranhados costumes de guerreiros, de poligamia e de canibalismo. Preferencialmente catequizava as crianças, que mais facilmente aprendiam a língua e os ensinamentos de Cristo, e, de heroico modo, às escondidas tentava batizar índios aprisionados de tribos rivais, que seriam devorados, pois seus inimigos achavam que o Batismo tirava o sabor de suas carnes.
    Na primeira viagem a Pernambuco, confrontou padres que ensinavam ser lícito capturar índios e abusar de escravas, das primeiras levas de negros, ainda não massivas, que começavam a chegar da África. E como abertamente os confrontava, assim como os portugueses que praticavam tais desmandos, foi violentamente perseguido e só sobreviveu graças a ajuda de importante gente local, entre eles o próprio Duarte Coelho. Os índios daí o admiravam e o convidavam às suas aldeias.
    Em 1552 tornou-se vice-provincial dos jesuítas no Brasil, respondendo ao provincial em Portugal. Construiu seminário para os filhos dos índios, que aprendiam a ler, escrever, contar, cantar, ajudar nas Santas Missas e na divulgação da Sã Doutrina entre os índios adultos.


    Na capitania de São Vicente, homenagem a São Vicente de Saragoça, equivalente a terras do atual estado de São Paulo, entrou pela mata para pregar aos índios, valendo-se do fato de estarem longe dos maus exemplos que assimilavam no convívio com os portugueses. Entre eles estava Tibiriçá, chefe da tribo tupiniquim, que se tornou um grande amigo, de prestimosos serviços. Os índios chamavam o Padre Nóbrega de Homem Santo, pois claramente percebiam sua devoção, e retidão moral.
    Em 1553, indo Thomé de Sousa ao sul da costa, fez questão de consigo levar nosso padre. No mesmo ano chegava Duarte da Costa, o novo governador, trazendo um jovem irmão jesuíta, que mais tarde se tornaria São José de Anchieta. Padre Manuel da Nóbrega é feito provincial do Brasil e passa a responder diretamente a Santo Inácio de Loyola.


    Em 1554, em suas incursões pelo interior, funda o Colégio de São Paulo de Piratininga, lugar que se tornaria a capital de São Paulo, a 12 léguas da costeira Vila de São Vicente, onde logra eliminar o canibalismo e batizar muitos silvícolas, pois, dada a fartura proporcionada pelas terras em que viviam, eram menos beligerantes, socialmente mais organizados e até usavam roupas de algodão para protegerem-se do frio clima.
    Em 1556 volta a Bahia a chamado do governador. Sua presença evitou uma grande guerra, pois as mentiras, os abusos e as traições de muitos dos portugueses, sequiosos exploradores e sem nenhum espírito público, irritavam os índios. Muito assustada, a população branca não os queria nem por perto nem agrupados, mas nosso padre pede ao governador terras para grandes aldeias e material para construir escolas e igrejas entre as tribos já batizadas. Toda população era contra, mas ele atendeu-o e isso resultou em grande paz. Os filhos dos índios já ensinavam aos pais tudo que aprendiam, e era belo vê-los participando no coral das igrejas. E assim nosso padre, se não alcançou a plena paz entre as muitas etnias, também pôs fim ao canibalismo aí.
    Em 1558 inspira Mem de Sá, o novo governador, que instituiu várias leis favoráveis aos índios. Fazer guerra contra eles, só com a autorização do Governo Geral. As grandes aldeias consolidam-se, apesar de os portugueses achá-las perigosas, mas boa parte dos índios, apesar de estranhar a imposição do fim dos costumes guerreiros entre seus povos, dos portugueses só queria respeito e paz. Para o padre e companheiros, além da pacificação, as aldeias facilitavam a comunicação e o Catecismo. Realizavam-se muitas conversões e batismos. Também foi proibido escravizar índios, a não ser em caso de irreconciliáveis inimigos de guerra. Os que já haviam sido capturados deveriam ser libertados. Com isso, os indígenas experimentaram forte motivação para viver a ordem e a paz pela delimitação de suas terras.
    Houve, porém, contratempos: alguns de uma mais afastada tribo atacaram e mataram índios cristãos. Estes recorreram ao governador que, depois de ouvir o Padre Nóbrega, pede a entrega dos culpados. Como não assentiram, Mem de Sá entrou pelas matas, atacou e dispersou chefes de 200 aldeias daquela nação. Por essa atitude, o governador ganhou respeito de todas nações indígenas. A nação rebelde, reconhecendo o inconveniente, entregou os culpados e pediu para ser catequizada pelo Padre Nóbrega e sua Companhia.


    Em 1559, doente, nosso tenaz Sacerdote deixa o cargo de provincial, mas com seu cajado continuou visitando a pé as aldeias.


    Em Porto Seguro, enquanto ele rezava a Santa Missa na capela de Nossa Senhora d'Ajuda, no arraial de mesmo nome, milagrosamente surgiu uma fonte. Com os relatos de milagres, e a grande devoção à imagem que com ele e os demais jesuítas viera de Portugal, aí surgiu o primeiro santuário mariano do Brasil, e a procissão é uma vívida tradição.
    Em 1560 os franceses tomam o Rio de Janeiro. Era a França Antártica, e a rainha Catarina dá ordem para expulsá-los. Mem de Sá vacila, manda chamar nosso padre para aconselhar-se e por ele foi persuadido a lutar. Ainda o acompanha até o Rio, porém o governador vai dispensá-lo contra sua vontade, mandando-o a São Vicente em razão de sua frágil condição de saúde. De lá, entretanto, ele mobiliza pessoal, arsenal e mantimentos e envia-os à guerra. Vencedor, o governador vai a Vila de Santos para encontrá-lo, quando nosso padre o ajuda no socorro aos enfermos, a reequipar a armada e a decidir litígios e prisões. Aí ele começou a ser chamado de Pai dos Necessitados.
    Por seus conselhos, Mem de Sá mudou a Vila de Santo André para Piratininga, e o colégio de Piratininga para a Vila de São Vicente. Essa mudança viu-se muito proveitosa para portugueses, padres e índios. Também sugeriu uma estrada entre São Vicente e Piratininga, por causa das espreitas dos tamoios, uma tribo rebelde que continuava fiel aos franceses e praticando o canibalismo. Mesmo muito enfermo, o 'homem de preto', como lhe chamavam a maioria dos índios, trabalhava bastante.
    Por esses tempos, os portugueses capturaram um capitão tamoio e entregaram-no para ser devorado pelos índios. Nóbrega viu nisso todos seus trabalhos desfeitos. De fato, acirrou-se a ira dos tamoios. Nosso padre rezou por dois anos pedindo a Deus, até resolver ir aos rebeldes na companhia do então irmão Anchieta. Era 1563. Os dois foram prontamente reconhecidos pelos silvícolas e fez-se trégua. Aí ficariam para tratar de paz e, em troca, 12 índios foram levados a São Vicente para ficar em companhia de outros padres, como garantia por suas vidas.


    Entre eles, Padre Nóbrega rezou a Santa Missa todos dias, conquistando-lhes admiração e respeito. Anchieta, dotado de grandes dons espirituais, doutrinava. Desestimularam a guerra entre etnias, a poligamia e o canibalismo e podiam visitar todas aldeias. Aí nosso amado padre começou a ser chamado de Pai dos Índios. Em gesto de confiança, os tamoios confessaram o plano que tinham em curso para destruir a Vila de São Vicente. Entre todas nações indígenas, correu a notícia da destemida presença do padre e do irmão, e só os tamoios do Rio de Janeiro não gostaram. Alguns destes guerreiros foram até lá para matá-los, mas quando os conheceram e ouviram o padre falar, sentiram-se desarmados. De imediato, perceberam que aquele homem não podia ser um traidor, como admitiram mais tarde.
    Os tamoios tomaram tanto gosto em conviver com eles que lhes ofereciam as filhas em casamento, e ao saberem do voto de celibato, ficaram ainda mais admirados. Nossos jesuítas aí ficaram dois meses e às Santas Missas atraiam todos da aldeia, que as ouvia com muito gosto e devoção a Deus que se tornou Pão. Outros índios do Rio de Janeiro vieram conhecê-lo, e após feitas às pazes não queriam mais que se fossem. Então Padre Nóbrega foi a São Vicente, enquanto o Irmão Anchieta ficou só na aldeia por mais três meses, a pedido dos índios e por própria vontade. Os tamoios livremente iam a São Vicente e lá eram bem recebidos, e abraçavam-se com índios de outras nações.
    Contudo, os franceses voltaram a invadir o Rio de Janeiro, e mais uma vez incitaram os tamoios. A rainha manda de Portugal o capitão-mor Estácio de Sá, sobrinho de Mem de Sá, para expulsá-los. Em 1564, o governador envia-o à capitania usurpada, mas primeiro manda buscar o Padre Nóbrega em São Vicente, com recomendações de aconselhar-se com ele e até de obedecer-lhe. Chegaram a atacar, mas o inimigo mostrou-se forte, não lhes dando condições de estabelecerem-se em terra. Voltaram, então, a São Vicente para melhor armarem-se. Muitas vozes levantaram-se contra a empreita, porém nosso padre sobremaneira persuadia a batalhar. A pé, ia visitar o capitão-mor com frequência em outra Vila, onde se encontrava, para animá-lo. Trouxe-o à sua casa. Garantiu que pessoalmente se explicaria à rainha caso o intento falhasse, assumindo toda culpa. Mobilizou índios, mestiços e portugueses; mandou navios à capitania do Espírito Santo para buscar armas e mantimentos; tomou dinheiro do imposto devido ao rei; resolveu assuntos de justiça prometendo perdão aos que se aliassem, entre outras providências.


    Em 1565, partiu a armada levando também o irmão Anchieta. Durante a guerra, enviaram-no a Bahia para tomar ordens do governador. De São Vicente, nosso padre enviava navios, mantimentos e homens, muitos deles índios que se voluntariavam, tocados por sua fé. Como a guerra demorava, o governador Mem de Sá pessoalmente veio tomar parte da luta. Venceram-na, por fim, mas Estácio morre de ferimento de guerra um mês depois. De passagem por estas terras, o Visitador do Brasil foi com o governador ao encontro do Padre Nóbrega em São Vicente. Trouxeram-no ao Rio de Janeiro para fundar o Colégio, ao qual o rei doava um dote bastante para 50 religiosos. Mesmo enfermiço, Nóbrega foi instituído o superior. O governador volta a Bahia, porém deixa aí outro sobrinho, como sempre pedindo aconselhamento e obediência ao padre. Índios do Espírito Santo espontaneamente vieram viver à sombra dos cuidados de nosso jesuíta, e a partir de então formaram forte defesa contra tamoios, franceses e ingleses.
    Movido por prudência, Nóbrega muito humildemente aí viveu três anos, passando um pouco melhor quando lhe chegavam esmolas de São Vicente. Foi tido como Pai da nova cidade. Já era aclamado o Pai dos Cristãos de todo Brasil. Muitas aldeias choraram sua morte. São José de Anchieta deixou muitos escritos que bem atestam sua santidade: de como repreendia os portugueses por enganar e escravizar os índios; como os condenava pelos maus exemplos de palavra, conduta e fé; como repreendia os maus padres por distorções doutrinárias, leniências, regalias e maus comportamentos; como amava os índios e esforçava-se por salvar-lhes as almas, pois era sua missão como cristão e tarefa que o rei lhe havia confiado; como tinha gosto na Salvação de todas almas, chegando a oferecer-se para fazer penitência por aqueles que estavam prestes a morrer, em troca de uma simples Confissão; como enfrentava os poderosos exploradores locais em Nome de Jesus, mesmo correndo risco de morte; como era querido do rei, que familiarmente lhe escrevia e dele tomava conselho.
    Em seu zelo pela Companhia de Jesus, modesto e vivendo de esmola, nos colégios fazia cumprir os jejuns determinados pela Igreja e ainda por toda quaresma, como forma de economizar mantimentos. Não matava as vacas doadas, nem nas mais difíceis situações, pois lhes queria o leite e as crias para os futuros alunos. Era o grande incentivador das pregações nas línguas indígenas. São José de Anchieta não teria alcançado tanta repercussão por suas obras sem o apoio, os ensinamentos e o exemplo de nosso padre.
    É dele a belíssima obra "Diálogo sobre a conversão do gentio", onde relata seu sacerdócio e convívio entre os índios.


    Em carta de 'exhortações' aos moradores de São Vicente, escrita na Bahia entre a Páscoa e a Ascensão de 1557, ele prega:

    "... porque grande mal é de trabalhos deste mundo ir a possuir outros maiores no outro, e já que é posta a lei no mundo que os filhos de Adão padeçam trabalhos, sejam antes os da penitencia proveitosa, os quaes o Senhor, com sua graça de consolação e alegria espiritual, faz mui pequenos, pois o seu jugo é sempre suave e leve, e é fiel senhor e bom, que nol-o ajuda a levar, ainda agora por sua parte, e sempre quer levar o maior peso, des que se avezou uma vez a levar a cruz ás costas para o Calvario, elle de uma parte, e Simão Cirineu da outra: com tal companheiro, com tão amoroso Senhor, quem poderá ser tão fraco, que não possa fazer penitencia de seus peccados, com tanto sangue derramado, que é verdadeira mesinha de nossas chagas? Quem não se curará? Curai-vos, Irmãos, curai-vos, si ainda não abastou a quaresma, nem padecer Christo, nem ressuscitar, nem abrirem-nos lá o thesouro todo da santa Egreja, para pagardes com elle todas as vossas dividas, porque, mui coitado será aquelle por quem passaram estas cousas todas, e ficar ainda por curar, e muito mais coitado aquelle, do qual Jesus Christo, subindo-se á dextra do Padre, e o deixa ainda em peccado mortal, e sobretudo muito mais mal aventurado aquelle quem, nem com tudo isso, nem com o Senhor nos mandar o seu espírito de vida abrasador de todos os corações de Jesus Christo, póde acabar comsigo apparelhar-se para recolher seu quinhão...
    ... muito desejo eu que aquelles a quem Nosso Senhor o (fogo do Espírito Santo) der, tenham também grande cuidado que não se lhe apague, mas antes, atiçando com a communicação dos sacramentos, com as orações ferventes, com as conversações castas e puras, com grande contricção do passado, e propósito constante do que está por vir, com a frequente meditação dos tempos passados, dos presentes e dos que esperamos, que serão sem fim, com muita guarda dos sentidos, e muito mais do coração, o qual não é razão, que seja senhor delle sinão o mesmo que o criou á sua imagem e similhança: com estas cousas, e outras muitas que o mesmo espírito de vida sabe mui bem ensinar nos corações, onde entra, queria eu que de tal maneira ardesseis em charidade que até os matos se queimassem com elle.
    Oh! Irmãos de Jesus Christo, herdeiros com elle da sua gloria, filhos perfilhados do Padre Eterno, vós sois as plantas, a nova semente, que o Senhor nestas partes pôz e plantou! Quem vos detem que não dais fructo digno de se apresentar na mesa do Rei Celestial? Estas são as fazendas principaes que haveis de fazer no Brasil..."

    Apesar de grande orador e hábil pregador, que com frequência levava os ouvintes à devoção e à comoção, era gago. Tão ativo, as últimas horas antes de morrer dedicou a escrever suas sugestões à Companhia de Jesus, aos cristãos e a tudo que importasse para a Igreja e o bem comum nestas terras.
    Tão frágil era seu corpo que quando chovia não podia caminhar de batina, pois molhada lhe pesava demais. Nessas ocasiões, como não queria ser carregado, ia só de camisola. Sua batina era sempre a mesma, até os últimos possíveis remendos. Seus aposentos igualmente eram de total pobreza. Escondia do governador que não tinha camisa, enrolando um lenço ao pescoço. Carinhosamente chamava esse lenço de ‘minha hipocrisia’.


    "Em Comunhão com toda a Igreja aqui estamos!"